sábado, 6 de agosto de 2011

A ÚLTIMA DONZELA (Parte final)

Depois de alguns dias da chegada do professor, que transformou a casa que ocupou numa pequena escola, a abuela foi visitá-lo. Era comum na aldeia oferecer os préstimos e mesmo algum alimento aos visitantes ou novos habitantes que ali se instalassem. O mestre agradeceu e os dois conversaram um pouco. Antes que a velha se fosse, a neta veio chamá-la. Curiosa, próprio da idade, Blanca fez um monte de indagações ao homem sobre o trabalho na escola e terminou decidindo que queria aprender coisas novas. Espantado e ao mesmo tempo encantado, ele se limitou a olhar para a avó que, séria, começou a sentir que algo ia se precipitar a partir daquele encontro.
                                               *     *     *
                   E Blanca, onde está?! Alguém porventura está preocupado com o que ela está sentindo?” pensava o professor, mãos no rosto, cabeça baixa. Se não era um julgamento, ao menos parecia. Havia um erro cometido? Havia, era certo. Se não, não estariam todos lá: o alcaide, o esculápio, o boticário, a abuela e outras mulheres da aldeia.
                   O esculápio sugeriu que consultassem o ermitão, pois se tratava de um falha moral. O boticário, alterado, berrava que tinham que enforcá-lo imediatamente. As mulheres ponderavam sobre o banimento daquele que, em termos de tradição, era um estranho. O alcaide tentava, sempre educado, organizar a discussão. O professor apenas olhava a todos, perplexo, imóvel e se questionando sobre o sentido de tudo aquilo. Nesse estado letárgico, conseguiu distinguir uma voz que pedia que ele contasse de novo o fato.
                   A lembrança do lago, o grande lago da aldeia, começou a desfilar devagar por sua mente, enquanto balbuciava as palavras, narrando os acontecimentos daquela tarde quente de primavera. Ele chegando para pescar e a visão súbita, através dos arbustos da margem. Blanca, descendo as alças do vestido claro, mostrando o corpo bronzeado, cabelos à brisa, antes de entrar na água. O professor, coração aos pulos, deixando cair o material de pesca, sem tirar os olhos daquela visão esplendorosa. É certo que ela havia estado já com roupas e maneiras bem provocantes na sua escola, mas se observasse isso para a assembléia, ninguém aceitaria. É certo também que as coisas novas que a menina dizia querer aprender estavam bem além dos conhecimentos e da sapiência do próprio ermitão, o conselheiro. Mas, com certeza, também não adiantaria de nada argumentar sobre isso. Recordou a maneira como ela percebeu a sua presença na beira do lago, e de como, apesar de ele querer  se retirar dali, a moça foi se aproximando de suas costas e o abraçou forte. O contato do corpo nu dela e o sangue latejando em seus ouvidos, os pequenos gemidos e um estertor de satisfação. E depois, nu, acordado pelo grupo de homens que estavam, agora, ali na sua frente.
                   O alcaide revelou que já havia consultado o ermitão. O velho conselheiro mostrou-se muito sério e apenas ordenou que não houvesse derramamento de sangue. E que eles decidissem da maneira mais humana sobre o que fazer com o professor. A abuela pedia justiça, pois há muito vinha pressentindo que o “réu” iria ferir um dos princípios vitais da aldeia: o respeito aos bons costumes. Sua neta era só uma criança e ele podia ser o pai dela, analisava. Algumas mulheres presentes achavam a atitude do ermitão muito ponderada e pouco prática, que a punição tinha que ser dura. O boticário, é evidente, tornou à carga com o enforcamento. Os ânimos começaram a esquentar, mas o esculápio propôs que o professor esperasse fora da casa, até que o grupo chegasse a uma conclusão.
                                               *     *     *
                   O mestre não pôde vê-la mais. Foi banido para sempre. O próprio alcaide dizia sentir muito por tudo aquilo, mas tinha de acompanhá-lo até a saída da aldeia. Quase enlouqueceu, pois tinha se tomado de amores pela virgem. Não adiantava voltar, não havia espaço para ele naquele lugar. Ele não fazia parte daquela comunidade, daquela comunhão de interesses. Não tinha dignidade suficiente, ainda que se arrependesse. Mesmo porque o malfeito estava consumado e não havia modo de desfazer. E essa dor que não passava, quem sabe com o tempo...
                   O professor sou eu, leitor. E Blanca ainda não passou. A memória é mais forte que o tempo. A memória pode mais que o tempo. E dói, e faz doer muito.

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi.)

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