sábado, 27 de agosto de 2011

O FIM DA ÚLTIMA DONZELA (Parte final)

          Quando acordei, não vi mais o ermitão. Tomei o rumo da aldeia que ele mencionara. Tinha que ver e falar com Francisco, meu filho. Será que tinham falado de mim para o garoto? Será que ele teve vontade de me conhecer? E essa de viver junto aos nativos daquela tribo? Como esse menino foi educado, como cresceu, que idéias teria do mundo? Muito para saber, e eu nem imaginava como Francisco me receberia. Cheguei ao local ainda envolvido nessas dúvidas todas, que faziam minha cabeça girar. Fui recebido com restrições, mas o chefe me indicou um monte rochoso ali perto, onde o garoto costumava subir junto com seu amigo, sobrinho do chefe, para conversarem e aprenderem sobre as coisas da Natureza e sobre os mistérios da vida na Terra. Ele me explicou que Francisco tinha se tornado um deles, adquirido seus hábitos e costumes, participando de rituais e respeitando a cultura simples da aldeia. Agradeci pelos esclarecimentos e pedi permissão para me encontrar com o menino, pois tinha muito que lhe falar. O chefe se limitou a fazer um sinal a seu sobrinho, que me levou até o topo da rocha, me deixando a sós com meu filho.
          Francisco falou de como foi difícil todo o tempo em que passou no vilarejo, vivendo com a avó, sem poder contar com a mãe, mesmo sabendo de toda a história. Sabia que eu era o homem banido por ter ajudado Blanca a colocá-lo no mundo, ainda que de forma renegada. E que sentia muito, mas não conseguia me ver como pai. Eu era estranho até aquele momento, e não fazia diferença se continuasse sendo. Sua sinceridade era contundente. Eu tentei argumentar, dizendo que podíamos recuperar o tempo perdido, se ele viesse comigo para a cidade grande. Havia uma casa confortável, mobiliada e aparelhada para satisfazer as necessidades de um jovem como ele, que seguramente precisava de mais instrução, de estudos e formação mais estruturada. Seu olhar sério e penetrante fez estacar os meus argumentos, e levou a mão de leve aos meus lábios, como que pedindo silêncio. Segundos que pareceram horas separaram nossa conversa, depois Francisco voltou a falar pausadamente. Falou de toda a beleza que descobrira naquela vida rústica, natural, cheia de saúde e descobertas emocionantes. Que não ia se sujeitar a viver com uma pessoa que nem sequer conhecia direito e que, de entrada, não sabia respeitar as suas escolhas. Ir para a cidade grande, para conviver com poluição, violência, vícios, vaidades, corrupção, falta de solidariedade e uma infinidade de exemplos errados? Como eu poderia saber o que era melhor para ele se o tempo todo em que precisou de bons exemplos, foi ali que ele os encontrou? Não, Francisco estava muito sereno ao me dizer tudo isso. E eu não podia fazer nada mais ali. Meu filho estava dando uma aula de sabedoria ao estranho que tinha a pretensão de vestir a máscara de seu pai, depois de tanto tempo. Havia algumas lágrimas em seus olhos, e o sobrinho do chefe percebeu a sua tristeza. Quis se aproximar, como se eu representasse alguma ameaça ao seu companheiro, mas meu garoto fez um gesto para que se contivesse. Depois se levantou, eu o imitei, e ele me abraçou, discretamente. Olhou mais uma vez, de uma forma séria, mas tranqüila, nos meus olhos e se despediu, como quem se despede de uma pessoa comum. Depois voltou a se sentar na rocha, com o amigo ao seu lado, os dois olhando algumas ovelhas que pastavam no pequeno vale lá embaixo. Não havia mais palavra a dizer. Comecei a caminhar de volta para a estrada que contornava o vilarejo, ainda com alguma esperança de que, um dia, eu não tivesse que voltar ali só para visitá-lo...


(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi)

domingo, 21 de agosto de 2011

O FIM DA ÚLTIMA DONZELA (Parte 2)

          O ermitão me tocou no ombro e me disse que a velha matriarca me esperava. Entrei na casa de decoração simples, mas muito bom gosto, e fui recebido por ela, na sala, postada de costas para mim. O sábio me fez um gesto para que calasse e apenas a ouvisse, pois a mesma não me achava digno de ser olhado no rosto.
          Contou que depois que fui banido, Blanca sofreu muito, ficou doente de saudade e quase morreu. Tinha algumas coisas sobre a constituição orgânica daquele corpo frágil e belo, que eu desconhecia, e que tornavam delicada a sua saúde. Depois de algumas semanas de quase completo alheamento, motivado seguramente pelas lembranças de todos os acontecimentos tristes decorrentes da minha presença no vilarejo, a abuela e o ermitão conseguiram fazer com que ela reagisse e passasse a se sentir motivada para continuar a sua vida. A notícia da chegada de uma criança causou euforia na comunidade inteira, mesmo sabendo-se que o fruto vinha de uma atitude renegada por todos naquele lugar. Havia muito tempo que todos esperavam o nascimento de uma criança, até como símbolo de prosperidade. Por isso o bebê de Blanca foi muito amado e criou-se uma expectativa enorme através daquela gestação.
          Nesse instante do relato, notei que a voz da mulher estava ligeiramente embargada, e por meu lado eu queria falar, gesticular, expressar todo o meu contentamento e meus questionamentos sobre tudo aquilo, sobre a mãe de meu filho, sobre ele próprio, mas o ermitão me segurou pelo braço e me fez um gesto para que silenciasse. A pausa revelou certo tremor por parte da velha abuela e, não fosse o fato de que ela permanecia de costas, eu juraria que chorava.
          Talvez por conta das circunstâncias em que foi gerada, a gravidez daquela criança não foi tranqüila. Blanca se sentia mal, com dores e incômodos freqüentes, o que a deixava fraca e debilitada, sendo cuidada constantemente pela abuela nas horas sofridas e nas noites mal dormidas. Nos últimos meses, com a aproximação do nascimento, Blanca melhorou consideravelmente e todos se animaram com a idéia de que o parto seria menos complicado do que a gestação. Mas o ermitão e a abuela já previam as conseqüências e, embora o menino fosse forte e saudável, a mãe acabou falecendo.
          A abuela, nesse ponto, fez uma nova pausa e desatou a desabafar todo o ódio que sentia por mim. Que Blanca era a única coisa boa que ela possuía nesse mundo, que foi como se arrancassem um pedaço dela, que eu era culpado por tudo aquilo, que se eu tivesse um mínimo de preocupação com a minha alma, deveria ir embora e deixá-la em paz, com a sua dor, com o seu sofrimento atroz e sem fim. O ermitão me puxou pelo braço e me levou dali, enquanto eu também chorava e procurava um lugar onde me apoiar, pois fraquejei fisicamente depois do impacto daquelas revelações. Blanca morta? Também de mim senti que cortava-se um membro, um órgão, uma parte... Morta? Por causa da gravidez que eu causei? Precisava me acalmar.
          Começou a cair uma chuva fina e eu pedi ao ermitão que me deixasse ali, no meio do caminho. Eu tinha que pensar, mas não conseguia. Sentei-me na beira da estrada, em cima de uma pedra, e deixei a chuva molhar o meu rosto, gotas se confundindo com as lágrimas grossas que rolavam. Fui tombando em direção a relva que havia em volta, meu rosto tocou o chão e eu continuava a tremer convulsivamente, desesperado. Após alguns momentos assim, senti uma mão que me pegava no braço e me ajudava a levantar. Era o ermitão, que me levou até sua casa, já tinha feito um chá de ervas bem forte, o que ajudou a me acalmar. Essa acolhida me deu esperança de que ele sabia onde estava meu filho e podia me revelar. O velho ficou calado durante todo o tempo em que tomávamos o chá. Ainda chovia e logo anoiteceu. Eu também assumi uma atitude reflexiva, mas com questionamentos avassaladores. Meu filho teria então quinze anos. Onde se encontrava? Com a abuela, certamente não. Vivendo com alguém da cidade?Talvez.
          Quando o dono da casa resolveu falar, sempre lacônico, contou que a matriarca não impediu que, aos doze anos, o garoto fosse embora de sua casa. Ele havia resolvido, depois de muitos passeios e muita convivência diária, que iria morar numa aldeia indígena, próxima ao vilarejo. Continuava a visitar a velha senhora, permanecendo forte e saudável, feliz com o estilo de vida que tinha escolhido. No final da conversa, depois de comermos uma refeição frugal, acho que o efeito dos chás me fez sentir um relaxamento profundo. Ou talvez isso se misturasse ao cansaço de todo aquele mistério desvendado durante esse dia. A noite foi de sono pesado e cheio de sonhos agitados.

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi)

sábado, 13 de agosto de 2011

O FIM DA ÚLTIMA DONZELA (Parte 1)

          Na medida em que ia me aproximando do vilarejo, minha garganta sofreu ligeira tensão, enquanto um caleidoscópio de imagens e vozes movimentava-se frenético em minha mente. Desde a minha vontade de procurar um lugar tranqüilo, onde fosse reconhecido como mestre de ensino, há longos dezesseis anos passados, misturada com os desejos represados e depois extravasados por Blanca, até os momentos sofridos após o banimento. Quando me postei triste, mas resolutamente, na entrada principal do lugar, voltei ao presente e uma comoção tomou conta de mim. Tive receios mil, que aumentaram de intensidade quando a figura do alcaide veio se aproximando devagar, com certeza para me receber ou me expulsar novamente.
Aliviado fiquei quando ele disse que já sabia porque eu voltava, completando que seria melhor eu ir ter direto com a abuela. A conversa com ela não seria nada fácil, mas eu tinha o direito de saber, pelo menos saber, de coisas importantes que haviam ficado no passado, e que hoje ainda tinham repercussões na alma da velha senhora, e também no espírito da comunidade inteira. Não foi explícito, como que deixando no ar todo o mistério destes últimos três quinqüênios.
          Algumas pessoas nos olhavam pela rua com expressões de aversão e outras sem compreender a materialização de minha presença no vilarejo. Nem mesmo os outros líderes da comunidade, como o esculápio e o boticário, se deram ao trabalho de sair de seus afazeres para receberem os meus cumprimentos ou tentarem sondar, em meu rosto, algum sinal de arrependimento. Se é que essa atitude, já demonstrada no julgamento de mais de quinze anos atrás, mudava alguma coisa na sua maneira de reconsiderar a minha pessoa.
          Depois de atravessarmos toda a via principal, chegamos ao outro extremo do vilarejo. O alcaide, que nos últimos momentos havia guardado um silêncio exasperante, sugeriu que eu fosse falar com a abuela acompanhado do ermitão. Ele não podia mais fazer nada por mim, e completou secamente que tinha muitas obrigações para dar conta no seu trabalho. Despediu-se com um gesto vagaroso e me olhando profundamente nos olhos. Aquilo deixou claro para mim que eu era apenas um forasteiro de passagem e que faria um bem enorme a todos se fosse embora dali o mais rápido possível.
          A casa do ermitão ficava a algumas dezenas de metros do fim da rua, sendo facilmente reconhecida pelas flores que o mesmo cultivava em profusão por todo o jardim da entrada. Rústica, porém aconchegante, pude vê-lo na varanda, numa velha cadeira de balanço, olhos fechados, como se dormisse. Ao me aproximar, tive um rápido sobressalto ao ouvir a sua voz me cumprimentando, sem que ele saísse da sua posição de quase letargia. Respondi que precisava ver a abuela e que só ele podia me acompanhar. Levantou-se devagar, fitou-me com um meio sorriso e disse que já sabia que eu viria. Que tudo aquilo era extremamente previsível e até inevitável. Que existiam forças que estavam me instando emocionalmente há muito tempo para voltar, mas que eu resistia. Por medo ou por desconhecimento do chamado misterioso que latia dentro de mim. Eu ouvia seu discurso morno, em ritmo quase que de uma ladainha, como se ele já o tivesse preparado há muito tempo, e me espantava com a naturalidade com que meus sentimentos eram desvelados.
          Quando quis me manifestar para ter alguma idéia concreta daquilo que, segundo o sábio, já estava a minha espera, o mesmo limitou-se a fazer um gesto vago com as mãos e ficou calado durante todo o curto caminho que levava até a chácara da velha senhora. Entrou na frente, e eu fiquei aguardando na varanda, a observar um pequeno tanque cheio de plantas aquáticas, de onde saíam alguns patos e seus filhotes. Por um instante eu me esqueci de toda aquela expectativa angustiante e entrei num estado de prostração, estimulado pela contemplação daquela cena simples e cheia de força natural. A água gera a vida, assim como a natureza humana gera o amor. A lembrança de Blanca, nesse momento, voltou com toda a força de sua vitalidade fresca e natural. Onde será que ela estaria agora?

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi)

sábado, 6 de agosto de 2011

A ÚLTIMA DONZELA (Parte final)

Depois de alguns dias da chegada do professor, que transformou a casa que ocupou numa pequena escola, a abuela foi visitá-lo. Era comum na aldeia oferecer os préstimos e mesmo algum alimento aos visitantes ou novos habitantes que ali se instalassem. O mestre agradeceu e os dois conversaram um pouco. Antes que a velha se fosse, a neta veio chamá-la. Curiosa, próprio da idade, Blanca fez um monte de indagações ao homem sobre o trabalho na escola e terminou decidindo que queria aprender coisas novas. Espantado e ao mesmo tempo encantado, ele se limitou a olhar para a avó que, séria, começou a sentir que algo ia se precipitar a partir daquele encontro.
                                               *     *     *
                   E Blanca, onde está?! Alguém porventura está preocupado com o que ela está sentindo?” pensava o professor, mãos no rosto, cabeça baixa. Se não era um julgamento, ao menos parecia. Havia um erro cometido? Havia, era certo. Se não, não estariam todos lá: o alcaide, o esculápio, o boticário, a abuela e outras mulheres da aldeia.
                   O esculápio sugeriu que consultassem o ermitão, pois se tratava de um falha moral. O boticário, alterado, berrava que tinham que enforcá-lo imediatamente. As mulheres ponderavam sobre o banimento daquele que, em termos de tradição, era um estranho. O alcaide tentava, sempre educado, organizar a discussão. O professor apenas olhava a todos, perplexo, imóvel e se questionando sobre o sentido de tudo aquilo. Nesse estado letárgico, conseguiu distinguir uma voz que pedia que ele contasse de novo o fato.
                   A lembrança do lago, o grande lago da aldeia, começou a desfilar devagar por sua mente, enquanto balbuciava as palavras, narrando os acontecimentos daquela tarde quente de primavera. Ele chegando para pescar e a visão súbita, através dos arbustos da margem. Blanca, descendo as alças do vestido claro, mostrando o corpo bronzeado, cabelos à brisa, antes de entrar na água. O professor, coração aos pulos, deixando cair o material de pesca, sem tirar os olhos daquela visão esplendorosa. É certo que ela havia estado já com roupas e maneiras bem provocantes na sua escola, mas se observasse isso para a assembléia, ninguém aceitaria. É certo também que as coisas novas que a menina dizia querer aprender estavam bem além dos conhecimentos e da sapiência do próprio ermitão, o conselheiro. Mas, com certeza, também não adiantaria de nada argumentar sobre isso. Recordou a maneira como ela percebeu a sua presença na beira do lago, e de como, apesar de ele querer  se retirar dali, a moça foi se aproximando de suas costas e o abraçou forte. O contato do corpo nu dela e o sangue latejando em seus ouvidos, os pequenos gemidos e um estertor de satisfação. E depois, nu, acordado pelo grupo de homens que estavam, agora, ali na sua frente.
                   O alcaide revelou que já havia consultado o ermitão. O velho conselheiro mostrou-se muito sério e apenas ordenou que não houvesse derramamento de sangue. E que eles decidissem da maneira mais humana sobre o que fazer com o professor. A abuela pedia justiça, pois há muito vinha pressentindo que o “réu” iria ferir um dos princípios vitais da aldeia: o respeito aos bons costumes. Sua neta era só uma criança e ele podia ser o pai dela, analisava. Algumas mulheres presentes achavam a atitude do ermitão muito ponderada e pouco prática, que a punição tinha que ser dura. O boticário, é evidente, tornou à carga com o enforcamento. Os ânimos começaram a esquentar, mas o esculápio propôs que o professor esperasse fora da casa, até que o grupo chegasse a uma conclusão.
                                               *     *     *
                   O mestre não pôde vê-la mais. Foi banido para sempre. O próprio alcaide dizia sentir muito por tudo aquilo, mas tinha de acompanhá-lo até a saída da aldeia. Quase enlouqueceu, pois tinha se tomado de amores pela virgem. Não adiantava voltar, não havia espaço para ele naquele lugar. Ele não fazia parte daquela comunidade, daquela comunhão de interesses. Não tinha dignidade suficiente, ainda que se arrependesse. Mesmo porque o malfeito estava consumado e não havia modo de desfazer. E essa dor que não passava, quem sabe com o tempo...
                   O professor sou eu, leitor. E Blanca ainda não passou. A memória é mais forte que o tempo. A memória pode mais que o tempo. E dói, e faz doer muito.

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi.)

"O direito à literatura"(fragmento)

Apresentamos, de forma objetiva, a visão de Antônio Cândido, grande historiador, analista e professor de Literatura: (...) "Chamarei de...