sábado, 4 de agosto de 2018

Crônicas de um lugar esquecido

A caixa dos sinais

Foi num dia morno de outono, depois de um período grande de estiagem, que a caixa apareceu, do nada, bem no jardim central do vilarejo. O lugar modesto, numa área circular, com pouca vegetação rasteira, flores miúdas e vulgares, era cuidado pelos próprios moradores do entorno, se mantendo limpo e arejado. A caixa se destacava no meio da vegetação por ser escura e envolvida em metais foscos. Chamou a atenção de um dos andarilhos do lugar, que, em muitas noites, dormia por ali ao relento. Logo de manhã, a pequena multidão se juntou e começou a especular sobre o conteúdo da caixa. Tentaram movê-la, mas era muito pesada, como se estivesse pregada ao chão.
Havia uma inscrição pequena, do lado de fora, que indicava a data e a hora, com desenhos estranhos, de quando a caixa iria se abrir. Mesmo com isso, foram chamados ferreiros, serralheiros e chaveiros, para tentar resolver a questão da abertura, mas tanto os metais como o material de que fora feita não permitiam qualquer arranhão ou acesso ao seu interior.
Todos ficaram intrigados com tudo aquilo. Ninguém sabia dizer ou tinha visto como aquele objeto pesado e resistente havia ido parar no centro do vilarejo. Nenhuma notícia de quem o trouxera, carregara ou deixara ali, a vista de todos e com todo aquele mistério.
Foi o assunto do dia, da semana, e a caixa não foi aberta por ninguém, muito menos movida. A ansiedade deu lugar à paciência, já que o foco agora era a data e o horário em que ela se revelaria a todos. O que haveria dentro? Algum tesouro, mapa, documentos de alguém, indícios de alguma herança ou riqueza esquecida? Ou estaria vazia e com instruções sobre o que guardar nela? Esses eram os temas que circulavam nas cabeças e bocas do lugar... No bar, nas casas, nas ruas, nos cantos e esquinas daquele vilarejo.
Na semana seguinte, numa tarde de ventos quentes que sopravam, e ainda derrubavam muitas folhas e faziam poeira por ali, alguém percebeu um ruído vindo da tal caixa, e correu a avisar outras pessoas, para que viessem. Tão rápido como o ruído cessou, muitos se amontoaram em torno da caixa, preparados para, finalmente, presenciar a tampa se abrindo. Mais alguns rangidos secos, meio surdos, e a tampa se levantou vagarosamente. O alcaide fez as honras e, após olhar em seu interior, constatou que somente havia uma placa, com o mesmo material escuro e resistente da caixa, depositada no fundo desta. Pegou com cuidado o objeto e soprou a poeira que o recobria, colocando à mostra uma mensagem em letras prateadas, escrita na pequena placa.
"A ÁGUA TUDO LAVA E TUDO LEVA..."
Que significava exatamente aquilo? Além do mistério daquele aparecimento, do desconhecimento daqueles materiais que a compunham, por que a tal caixa trazia essa mensagem, que mais parecia um sinal de presságios? Palavras simples, porém encharcadas de profundeza e temeridade...
O alcaide levou a placa para casa e, no dia seguinte, a grande caixa sumiu. De forma tão estranha e oculta como quando surgiu. A mensagem, porém, foi objeto de conversas e dúvidas entre todos do lugar. Naquela mesma tarde, depois do sumiço, o ar ficou pesado, as nuvens se adensaram e o vento se tornou mais forte. Uma grande tempestade se anunciou, deixando o dia escuro e tenebroso.
Mas não caiu sobre o vilarejo, ao contrário, atingiu a cabeceira do rio que ladeava a cidade. E fez com que ele fosse crescendo, se avolumando de tal forma, que as águas começaram a subir e entrar pelas ruas do vilarejo. Iam lavando e levando, de roldão, tudo o que encontravam pelo caminho. As pessoas mal tiveram tempo de subir nas partes mais altas dos edifícios, e dos morros que se avizinhavam. A rapidez da inundação permitiu apenas que a pequena população se salvasse. A chuva durou três dias inteiros, e devastou a maior parte do pequeno lugar... Surgiram especulações sobre castigo divino, outras sobre a caixa ser uma maldição ou coisa parecida. Para coroar as dúvidas não satisfeitas, depois que o rio baixou e a água se foi, a placa também desapareceu da casa do alcaide. 

César Pavezzi

"O direito à literatura"(fragmento)

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