sábado, 13 de agosto de 2011

O FIM DA ÚLTIMA DONZELA (Parte 1)

          Na medida em que ia me aproximando do vilarejo, minha garganta sofreu ligeira tensão, enquanto um caleidoscópio de imagens e vozes movimentava-se frenético em minha mente. Desde a minha vontade de procurar um lugar tranqüilo, onde fosse reconhecido como mestre de ensino, há longos dezesseis anos passados, misturada com os desejos represados e depois extravasados por Blanca, até os momentos sofridos após o banimento. Quando me postei triste, mas resolutamente, na entrada principal do lugar, voltei ao presente e uma comoção tomou conta de mim. Tive receios mil, que aumentaram de intensidade quando a figura do alcaide veio se aproximando devagar, com certeza para me receber ou me expulsar novamente.
Aliviado fiquei quando ele disse que já sabia porque eu voltava, completando que seria melhor eu ir ter direto com a abuela. A conversa com ela não seria nada fácil, mas eu tinha o direito de saber, pelo menos saber, de coisas importantes que haviam ficado no passado, e que hoje ainda tinham repercussões na alma da velha senhora, e também no espírito da comunidade inteira. Não foi explícito, como que deixando no ar todo o mistério destes últimos três quinqüênios.
          Algumas pessoas nos olhavam pela rua com expressões de aversão e outras sem compreender a materialização de minha presença no vilarejo. Nem mesmo os outros líderes da comunidade, como o esculápio e o boticário, se deram ao trabalho de sair de seus afazeres para receberem os meus cumprimentos ou tentarem sondar, em meu rosto, algum sinal de arrependimento. Se é que essa atitude, já demonstrada no julgamento de mais de quinze anos atrás, mudava alguma coisa na sua maneira de reconsiderar a minha pessoa.
          Depois de atravessarmos toda a via principal, chegamos ao outro extremo do vilarejo. O alcaide, que nos últimos momentos havia guardado um silêncio exasperante, sugeriu que eu fosse falar com a abuela acompanhado do ermitão. Ele não podia mais fazer nada por mim, e completou secamente que tinha muitas obrigações para dar conta no seu trabalho. Despediu-se com um gesto vagaroso e me olhando profundamente nos olhos. Aquilo deixou claro para mim que eu era apenas um forasteiro de passagem e que faria um bem enorme a todos se fosse embora dali o mais rápido possível.
          A casa do ermitão ficava a algumas dezenas de metros do fim da rua, sendo facilmente reconhecida pelas flores que o mesmo cultivava em profusão por todo o jardim da entrada. Rústica, porém aconchegante, pude vê-lo na varanda, numa velha cadeira de balanço, olhos fechados, como se dormisse. Ao me aproximar, tive um rápido sobressalto ao ouvir a sua voz me cumprimentando, sem que ele saísse da sua posição de quase letargia. Respondi que precisava ver a abuela e que só ele podia me acompanhar. Levantou-se devagar, fitou-me com um meio sorriso e disse que já sabia que eu viria. Que tudo aquilo era extremamente previsível e até inevitável. Que existiam forças que estavam me instando emocionalmente há muito tempo para voltar, mas que eu resistia. Por medo ou por desconhecimento do chamado misterioso que latia dentro de mim. Eu ouvia seu discurso morno, em ritmo quase que de uma ladainha, como se ele já o tivesse preparado há muito tempo, e me espantava com a naturalidade com que meus sentimentos eram desvelados.
          Quando quis me manifestar para ter alguma idéia concreta daquilo que, segundo o sábio, já estava a minha espera, o mesmo limitou-se a fazer um gesto vago com as mãos e ficou calado durante todo o curto caminho que levava até a chácara da velha senhora. Entrou na frente, e eu fiquei aguardando na varanda, a observar um pequeno tanque cheio de plantas aquáticas, de onde saíam alguns patos e seus filhotes. Por um instante eu me esqueci de toda aquela expectativa angustiante e entrei num estado de prostração, estimulado pela contemplação daquela cena simples e cheia de força natural. A água gera a vida, assim como a natureza humana gera o amor. A lembrança de Blanca, nesse momento, voltou com toda a força de sua vitalidade fresca e natural. Onde será que ela estaria agora?

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi)

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