domingo, 29 de maio de 2011

CAUTELA NAS RELAÇÕES SOCIAIS E RESERVA EM CERTOS ASSUNTOS

Tenha cautela quando se relacionar com os outros
(Epicteto, filósofo latino)

         Quando você se relaciona socialmente com outras pessoas, podem acontecer duas coisas: ou você se adapta à maneira de ser delas ou faz com que se adaptem à sua. É como encostar um pedaço de carvão apagado em outro que está em brasa: ou o primeiro apaga o segundo ou este acende o primeiro. Como o risco é grande, seja prudente quando se envolver em relacionamentos pessoais, até mesmo – e em especial – quando se tratar de relacionamentos casuais e despreocupados.
         A maioria de nós ainda não desenvolveu firmeza suficiente para direcionar os companheiros para o nosso próprio caminho, de modo que acabamos sendo levados pela multidão. Nossos valores e ideais ficam imprecisos e contaminados. Nossas resoluções se desestabilizam.
         É difícil resistir quando amigos ou companheiros começam a falar com muita segurança e ímpeto. Se somos pegos desprevenidos quando eles abordam assuntos pouco dignos, ficamos envolvidos pelo ritmo do ambiente social em que estamos. É da natureza da conversa que seus múltiplos significados, insinuações e motivações pessoais sucedam-se com tal rapidez que possam, de um momento para outro, desviar-se para direções não recomendáveis, aviltando todos os que dela participam. Sendo assim, enquanto os sentimentos sábios não se fixarem bem em você, transformando-se em instinto, e enquanto você não tiver adquirido uma certa capacidade de autodefesa, escolha com cuidado as suas companhias e controle o rumo das conversas de que participar.

Nunca discuta assuntos importantes displicentemente
(Do mesmo Epicteto)

         Tenha o cuidado de não discutir displicentemente, sem seriedade, assuntos que são de grande importância para você com pessoas que não são importantes para você. Agindo assim, o valor do conteúdo desses assuntos é esvaziado e você debilita seus propósitos. Isto é especialmente arriscado durante os estágios iniciais de alguma tarefa ou compromisso.
         Certas pessoas banqueteiam-se como aves de rapina em nossas idéias. Sentem-se no direito de, com grande jovialidade, interpretar, julgar e distorcer à vontade aquilo que é fundamental para você, e com isso seu ânimo fica abalado. Deixe que suas idéias e planos amadureçam antes de exibi-los para os contestadores e depreciadores.
         A maioria das pessoas só sabe como reagir a uma idéia atacando seus pontos fracos e não identificando seus méritos potenciais. Procure ser mais reservado para que seu entusiasmo não se dissipe.

(Textos extraídos do livro: A Arte de Viver, versões de Sharon Lebell.)

sábado, 21 de maio de 2011

LEMBRANDO A CANÇÃO (Parte final)

Há três semanas, depois de quase haver esquecido a “tal”, fui visitar uma velha tia, em Ouro Preto, e acabei encontrando com essa advogada. Foi naquele final de semana que eu voltei atrasado e acabei levando bronca por não fazer o programa de domingo...
- É, desculpa mais besta aquela de dizer que não havia encontrado passagem, que não tinha mais ônibus. Eu logo sabia que tinha mulher no meio. – tinha um ar de repreensão.
                   Foi o melhor encontro da minha vida... Passeamos pelas cidades históricas, conheci detalhes incríveis de Minas. Imagine que havia um bar, que nós visitamos na madrugada de sábado para domingo, cujo proprietário era apaixonado por poemas simbolistas e ficava-os recitando a noite toda, de mesa em mesa. O ambiente, à luz de velas e bastante rústico, era perfeito para a inspiração do homem. E esse foi só um detalhe das coisas gostosas que curtimos juntos...
- Quer dizer que você esteve fazendo este mistério todo porque queria, discretamente, proteger a reputação da loira... Como é mesmo o nome dela?! – interessou-se Fred, num tom de malícia.
- Calma, amigo. Não nos dissemos os nomes. A gente se tratou por “advogada” e “jornalista” durante todo o tempo. E, acredite, eu achei esse jogo muito excitante. Com tudo o que a gente ‘tava vivendo, que importância tinham nomes, apelidos, sobrenomes?!
                   Pois bem, nós não tínhamos ido até Belo Horizonte ainda e só chegamos lá no domingo á noite. É engraçado como quando você está envolvido com uma situação, você se esquece de outros compromissos... Ela era muito atraente e nosso papo, interminável. Um assunto puxava outro e creio que só não falamos de nosso passado. Não sabia de onde aquela mulher vinha, mas em vários momentos tive a sensação de que já a conhecia há muito tempo. Quando entramos no apartamento, fiquei admirado com o conforto e a sobriedade de estilo. Perguntou se eu queria tomar um banho, enquanto preparava alguma coisa para o jantar. Mostrou-me as dependências do lugar, me indicando o banheiro.
- Vamos, doutor Plínio, conta logo por que essa mulher ‘tá te perturbando tanto. – interrompeu Frederico, ansioso. – Se for pra dizer que transou com ela, nem precisa continuar...
- Aí é que está o segredo: não transei... Não fomos pra cama. E eu já digo por quê.
                   A ducha me pôs a pensar como tudo estava sendo tão incrível. Tinha percebido que ela morava sozinha, devia ser solteira e independente. O tipo de mulher com quem todo homem sozinho gostaria de se envolver... Usava um roupão de seda quando me entregou o copo com uísque e me disse que também ia tomar banho. Sentei-me no sofá da sala, ouvindo uma música suave e relaxante que tocava. Som de sax era realmente muito sensual naquela ocasião. Foi quando percebi alguns porta-retratos numa estante e resolvi me aproximar para ver os rostos que eram caros à ela. Um deles tinha uma senhora com a moça, em idade adolescente, nos braços. Senti um choque emocional naquela hora... A senhora era a minha mãe! E tive a confirmação da coincidência quando observei a dedicatória no canto inferior: “Para minha princesa, com carinho. De sua mamãe: Marta”.
                   Fui tomado de horror, uma espécie de pânico crescente, que me fez afastar das fotos cada vez mais. Corri até o quarto, peguei minhas coisas e nem me despedi. Minha “irmã” continuava no banho. A possibilidade de aquela coisa execrável chamada incesto ter acontecido, já me deixava com nojo de mim mesmo. O resto, ou a continuação de tudo, são as chamadas insistentes dessa garota, querendo me ver... Talvez até esteja apaixonada.
- Você tem certeza disso tudo? – espantou-se Fred, sério.
- Claro que sim. Aliás, ela tem muita coisa na expressão que lembra minha mãe... Depois daquilo, venho refletindo e me lembrei que entre as fotos deu pra reconhecer o homem que estava com minha mãe na cama, quando eu tinha sete anos. Minha irmã, Fred, calcule...É isso o que ‘tá me atormentando. Bonita, inteligente, mas filha da minha própria mãe.
- ‘Tá certo, ‘tá certo. É uma situação complicada, mesmo... Mas você já pensou que talvez ela nem sonhe que você exista? E que depois de tantos anos da morte da sua mãe, seria até uma boa ela saber que tem um irmão, ou meio-irmâo? – sugeriu ele, tentando me tranquilizar.
- Aí é que está: se ela não sabe nada sobre mim, será que vai acreditar na coincidência?
- Sabe, Piti, posso entender que você tenha vergonha de ter sentido desejos por sua própria irmã. Agora, não querer dizer a verdade sobre tua história pra ela por medo, isso eu não entendo, não. – disparou, com franqueza. – Vamos lá, meu irmão, encara essa de frente... Já imaginou: você tem uma irmã, cara? Isso é lindo. Ou não é?
- Não sei... Preciso pensar mais... Analisar.
- Bom, vamos indo que já está na hora. Depois a gente fala mais sobre isso.
- É... É isso aí.
                                               *       *       *

                   Fui procurar um analista, no dia seguinte. Coisa que eu devia ter feito há muito tempo. A primeira sessão foi aliviante e me convenci que tinha dado um grande passo para melhorar meu convívio comigo mesmo. A “tal” loira não ligou mais, mas decidi falar sobre minha meia-irmã ao psicólogo. Ele era um profissional bastante consciente do trabalho que fazia e me proporcionou descobrir que, em verdade, eu nunca tinha perdoado minha mãe pela “traição” a meu pai. Minha identificação com a figura de papai me encheu de recalques com relação àquele lance da infância. Era como se eu próprio houvesse sido traído, daí o ressentimento dirigido à velha. Ressentimento este que estava sendo transferido para o que representava a figura da minha irmã. Fruto da traição de minha mãe com outro homem, essa moça não cabia na estrutura das minhas relações de afeto.
- Mas ela não tem nada a ver com as decisões que tua mãe tomou, Plínio. – observou Fred, quando comentei as descobertas que vinha fazendo, graças à terapia.
- Superficialmente, eu sei. Mas preciso trabalhar melhor essas idéias. Preciso de tempo... Aliás, estou me sentindo mais preparado para entender tudo isso.
                   Um dia, conversei com a secretária do meu analista, enquanto esperava. Ela estudava psicologia e me deixou encantado com o desembaraço e a simpatia durante o nosso papo. Depois de um tempo, fomos jantar juntos e passamos momentos muito agradáveis. A relação com o último namorado tinha sido meio conturbada, pois ela detestava tipos machistas, ainda que tivessem cara e corpo bonitos. Ia se formar naquele ano e acabou me convidando para um almoço em família, no domingo próximo. Fred estourou de rir, quando soube.
- Almoço em família, é? Sei. Depois o pai vai insinuar um noivado, compromisso, aquelas coisas...
- Deixa de ser apressado, cara. E quer saber do que mais: acho que estou até precisando disto. Essa coisa de família, reunião de parentes, conhecer os pais, me agrada. – resolvi.
- Bom, tem gosto pra tudo. Você é quem decide o que fazer da tua vida.
- Se você quiser, pode vir com a gente. Quem sabe se ela não te apresenta uma irmã? – sugeri, num tom de ironia.
- Engraçadinho... E por falar em nisso, já se decidiu a procurar a tua?
- Não, ainda não. Tenho pensado muito, acredite. Depois, ela não me ligou mais...’Tô achando esquisito.
- Também, depois de todas as descartadas que você deu. Agora é a sua vez... E quer um conselho: não demore muito mais.
                   Eu voltei ao estúdio com aquela sensação de desconforto a me incomodar.
                                               *        *        *

                   Cheguei em Belo Horizonte emocionado e cheio de tremores adolescentes, que há muito não sentia. Sem avisar, não tinha ninguém me esperando. O porteiro do prédio disse que a senhorita Lisandra estava no tribunal. Estava atuando como advogada de defesa num caso muito difícil.
- Mas, como é o nome do senhor?
- Plínio... Por quê? – estranhei a curiosidade do homem.
- Acho que ela estava praticamente esperando a sua visita... Parece muito feliz por saber que tem um irmão como o senhor. Tem falado muito sobre isso.
                   Nem esperei que ele continuasse. Então ela já sabia de tudo. Parei em frente ao prédio do tribunal, mas não consegui vaga para estacionar. Um tanto ansioso, quase atropelei um gari que passava naquele instante. Tive que deixar o carro a várias quadras dali e corri até chegar na porta da sala de audiências. Entrei no exato momento em que o juiz proclamava a sentença. O réu foi considerado inocente.
                   Quase empurrei as inúmeras pessoas que cumprimentavam Lisandra pelo bom desempenho. Quando nossos olhos se encontraram, começamos a chorar e nos abraçamos. Ninguém podia imaginar que eu a estava abraçando por algo muito mais importante do que uma brilhante defesa.
(Este conto faz parte do livro: PÉROLAS DE AMADOR, de minha autoria - César Pavezzi)

domingo, 15 de maio de 2011

LEMBRANDO A CANÇÃO (outro conto meu)


                   Mais uma noite cheia de participações pelo telefone:
- Quer ouvir qual sucesso?! – perguntei, pela quadragésima vez (se não me engano).
A voz do outro lado era divertida, mas ao mesmo tempo, ansiosa. Queria uma música agitada, justificando que a noite estava muito linda. Fiz sinal para o técnico soltar o som e me despedi, como sempre acontecia.
Enquanto a música rolava, fiquei olhando o céu pela vidraça da sala, ao lado do estúdio. O programador falou comigo:
-    E aí? Preocupado?
-                                                    - Um pouco. Fico me perguntando se não dei bandeira demais, Fred... Essa garota ainda vai me fazer perder o emprego.
-                                                    - Ih, que papo é esse?! Você tem sete anos de casa, cara. Não tem que se preocupar com isso, não. Fica frio. Só acho que você tem que tomar cuidado numa próxima... Sabe do que mais? Ela não vai ligar pra cá, não. Se ‘tá tão interessada em você, vai ter um mínimo de bom senso, antes de te perturbar no local de trabalho.
-                                                    - Aí é que está o problema: não a conheço tanto pra ter essa tua segurança... Tomara que não ligue mesmo. – eu tinha um sentimento desagradável de dúvida.
-                                                    - Bom, depois de trabalhar, a gente sai aí, tomar uns conhaques pra esquentar, e papear. Hoje ‘tá um frio dos diabos. – disse, esfregando as mãos.
-                                                    - ‘Tá legal. Vamos, que a música ‘tá no fim.
Menos de meia hora depois e aquela voz, meio rouca, quente, com o programa no ar. No ato, fiz sinal para Fred cortar tudo, sair do ar. Depois a gente inventava uma desculpa, um corte de energia, sei lá.
- É tão simples, você podia concordar em me ver... Um lugar tranquilo, só nós dois. Há muitas coisas pra gente conversar... – o tom era pausado, com uma certa dose de ironia.
- Tudo bem, mas ouça aqui: por que não liga pra minha casa?
- Você quase não para lá. Estou cansada de falar com sua secretária eletrônica... Então, onde a gente pode ir? – era uma intimação, percebi.
- Você está me prejudicando... Aqui é um local de trabalho. Liga pra minha casa no fim de semana... Eu preciso voltar ao programa.
- Se você quer assim. Domingo pela manhã. Um beijo. – e desligou, com a mesma suavidade de sempre.

*      *      *

                   Mesa de bar rotineira. Fred olhava para mim e na sua testa dava para visualizar: “E então?”.
- É, não adianta mesmo, né? A gente falou sobre um punhado de coisas, recordamos nossas farras, nosso começo no rádio... Mas sei bem o que você ‘tá com vontade de papear.
- Adivinhão! Olha, Piti, se você não tiver a fim de se abrir, vou entender... É que ‘tô te sentindo angustiado, pra baixo, cheio de preocupação por causa de uma mulher a mais... – ele tomou outro gole.
- Não é simplesmente uma mulher “a mais”, meu caro Frederico. A coisa é mais complicada do que você possa imaginar. – eu olhava para o copo e tentava encontrar na cor da bebida uma forma de contar a verdade.
- Então, ‘tá. Faz um tempão que nós somos amigos, eu nunca escondi nada de você... Essa história ‘tá me deixando muito curioso. Mas não é uma curiosidade de quem pensa ouvir pra fofocar ou fazer gozação, não. Talvez eu possa ajudar, fazer alguma coisa... Você ‘tá devagar esses dias, nem ir na festa dos disc-jóqueis você quis, ‘tá ficando nessa rádio onde a gente trabalha o dia inteiro... Que é que há, Piti? Vai se anular porque uma “perua” que você não quer, ‘tá pegando no seu pé?! – Fred se alterou um pouco.
- É, você ‘tá certo. ‘Tô fugindo de muitas coisas, sim. É pura fuga, pode crer... Reconheço que “pisei na bola” contigo também. Mas vou voltar a ficar numa boa, prometo. Não me leve a mal... Depois de domingo, eu resolvo tudo. Aí, me abro com você.
- Como é que é?! Quer dizer que tem hora certa pra confiar nos amigos, agora? Essa é nova!
- Calma, Fred. É tudo uma questão de tempo... Juro que é melhor você saber a história toda depois.
                   Ele jogou uma nota em cima da mesa e fez um gesto de despedida. Eu ainda fiquei por ali, observando as luzes da cidade e me sentindo impotente diante das coincidências fatais que envolvem os seres humanos.

*     *     *

                   No sábado, eu e Fred nos mandamos para o chalé do cunhado dele. A família tinha ido passar o inverno em outra cidade e cedeu as chaves do lugar.
- Nem pense que vou ficar aguentando essa tua “caretice” de depressão, não. – ele foi avisando, quando a gente se pôs a caminho. – Descolei duas “gatas” que são deliciosas... e inteligentes. Aliás, mulher burra na minha cama, nem rezando. Elas vão encontrar os “garotões” aqui, à noite.
- Você não perde o pique, hein, farrista! Desse jeito, até esqueço os problemas...
- Aí, “doutor” Plínio, assim é que se fala... È pra lembrar que Deus é grande e o descanso é sagrado. – tinha um ar de satisfação.
                   A tarde estava linda, com um sol maneiro de inverno. O carro era aconchegante, protegendo-nos do vento cortante nas árvores. A estrada tranquila me pôs a divagar... Aquele final de semana ia me livrar do nefando telefonema. A gente planejava voltar no domingo à noite. Eu, como sempre, ia direto pra rádio. O programa da noite me esperava. Livre daquela voz, adiando mais uma vez o encontro... Até quando? Até quando, Piti?
- Até quando, Piti? Ei, ‘tá me ouvindo, cara?! – era Fred, me trazendo de volta.
- Perdão, eu não ouvi mesmo. Que é que você quer saber?
- Até quando vai esse programa na madrugada?
- Fim do mês, eu acho. Bem, pelo menos na nossa mão... Depois, eles vão colocar o Dílson e o Nélio pra fazer... Por quê?
- ‘Tô cansado, rapaz. É um saco ter que trocar o horário de dormir... Além disso, ‘tava com uns projetos novos para a programação...Queria discutir com você, depois.
- Calma, Fred. É só me procurar e a gente conversa. Não quer me adiantar nada, agora?
- Não, vamos nos concentrar para o “programa” de hoje... Muito melhor. – e ele sorria, malicioso.

*      *      *

                   A minha expressão não deixava esconder nada. Pura decepção... É claro que Fred estranhou e me fez um monte perguntas. Diante da insistência dele, desabafei:
- Não consegui... É, em nenhuma das vezes. Nem na banheira, nem à noite, no quarto. Nem pela manhã, nem na piscina aquecida, nada. Queria saber? Pronto: já contei.
- Nadinha?!
- Não.
                   Ele ia estourar em gargalhada, mas se conteve. O carro rodava macio, na volta para a cidade.
- É sério, então, hein?! Olha, quer mesmo saber: a gente tem um tempo antes de ir pra Rádio. Vamos passar lá em casa, tomar uma sopa reforçada e você me explica tudo, direitinho. Ou vai querer adiar isto também? – tinha um tom meio desafiante.
-    Não, você ‘tá com a razão. É melhor mesmo me abrir com alguém, antes que eu estoure.
- Ótimo, é isso.
                   Enquanto ele preparava a tal sopa, eu justifiquei que sabia muito bem por que tinha falhado com a garota, no chalé. Era a maldita fixação na figura do telefone que interferia e estragava tudo.
- É, eu também já me frustrei, pensando em outra mulher...- admitiu, parando de cortar uma cebola.
- Pois é, dá pra você entender o quanto é duro pra mim. Mas isso não é o pior...
                   Passei a contar uma história muito antiga, de família, que Fred pouco ou nada conhecia. Minha mãe, quando eu tinha sete ou oito anos, separou-se de meu pai. Ele era bem mais velho do que ela e passou a procurá-la com menos frequência na cama. Eu adorava o jeito de intelectual bonachão do velho e não entendia por que minha mãe brigava tanto com ele. Um dia cheguei em casa da escola, sempre contente por ter coisas novas para contar e mostrar. Estranhei a porta da frente fechada àquela hora e decidi entrar pelos fundos. No corredor, ouvi gemidos profundos vindos do quarto de minha mãe e pensei, na minha inocência, que ela poderia estar passando mal. Quando alcancei a porta do quarto, só encostada, a fresta me mostrou que, em verdade, minha “progenitora” estava era se sentindo muito bem...
- Você quer dizer que havia um homem com ela?! – espantou-se Fred, sentando-se.
- E não era meu pai... Isto foi o mais triste pra mim.
                   Fiz uma pausa, enquanto tomava um gole de vinho, para depois continuar. Breve, meu pai descobriu o romance e, com dignidade e resignação, providenciou a separação. Foram meses de angústia e confusão para mim. É claro que preferi viver com meu pai. Mamãe me ligava, às vezes, e me visitava em duas datas, que ela achava importantes: meu aniversário e no Natal. Dez anos mais tarde, meu pai morreu e confesso que fiquei tentado a procurá-la... Mas meu senso de honra não me permitiu. É tão engraçada essa coisa de princípios, orgulho, dignidade.
- É, é uma coisa muito relativa – concordou Fred, mexendo a sopa.
                   Com o tempo, eu me acostumei a viver sozinho. Fiz minha faculdade e me tornei jornalista, graças ao incentivo de meu pai, que nunca descuidou da minha formação intelectual. Na festa da formatura é que começou o meu conflito com essas questões de princípio, moral e etc.
- Já sei, sua mãe te procurou pra te cumprimentar e pedir pra voltar a morar com ela? – arriscou Fred, cada vez mais curioso para saber o final.
- Não, o pior é que não. O lance foi outro...
                   Havia vários tipos de bebidas e pessoas na festa. Muita música rolando e, depois de certa hora, os casais começaram a sair do ambiente. Eu tinha sido mostrado a uma loira, estudante do primeiro ano de Direito e muito bonita. A gente começou a conversar sobre mercado de trabalho, perspectivas de futuro, essas coisas de quem vai iniciar a carreira. Não, não foi com ela que fiquei naquela noite, não. Foi com uma colega, que hoje trabalha na Rádio Cultura de São Paulo...
- A Joana Tales? – lembrou Fred, sorrindo.
- Essa mesma. Aliás, foi uma noite super gostosa, digna de dois sofridos formandos de Jornalismo...
                   Três anos depois que comecei a trabalhar na nossa Rádio (a gente ainda não se conhecia direito), uma noite eu fui fazer uma reportagem sobre um julgamento, em Campinas, e acabei passando o dia seguinte inteiro naquela cidade. Qual não foi minha surpresa ao perceber que a tal loira estava almoçando no mesmo restaurante que eu?!
- A mesma da festa de formatura? – quis confirmar Fred, ajeitando a mesa para a gente comer.
- Exato. Usava o mesmo penteado, tinha o mesmo ar charmoso e seguro daquela noite, e me reconheceu no ato...
                   Conversamos sobre o julgamento, descobri que ela não estava trabalhando em Campinas e que só tinha ido fazer umas compras. Quis insinuar um encontro, a sós, logo mais à noite, mas a mesma me disse que estava de partida para Belo Horizonte, onde morava. Um telefone na toalha de papel do restaurante e, momentos depois, eu ficava sozinho. Pensativo e ruminando a coincidência entre nós.
- Ela estava mais bonita? – quis saber Fred.
- Linda... Loira, mas sem exagero. Traços delicados, mas muito firme nas colocações que fazia... Simpática, sem ser vulgar. Enfim, uma pessoa muito agradável de se ver e ouvir.
                   Eu me servi da sopa de Fred e, enquanto esperava esfriar, continuei. Telefonei para a moça e, só quando teclei os primeiros números, cheguei a me tocar que são sabíamos sequer os nomes um do outro. A secretária eletrônica me fez deduzir que ela deveria ser uma advogada muito ocupada com o trabalho. E, talvez por segurança, a mensagem só repetia o número do local e o pedido para deixar algum recado. Tentei, outras vezes, meses a fio, e nunca consegui acertar um horário em que a mesma pudesse estar em casa.

(Leia a conclusão dessa história  na próxima semana. - César Pavezzi)

domingo, 8 de maio de 2011

UM POEMA QUE DIZ MUITO DE MIM...

METADE
(Osvaldo Montenegro)

                                    E que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a pessoa que eu amo
Seja sempre amada, mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
E a outra metade é saudade

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimento
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
E a outra metade é um vulcão

                Que o medo da solidão se afaste
                Que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
                Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
                Que eu me lembro ter dado na infância
                Porque metade de mim é a lembrança do que fui
                A outra metade eu não sei

               Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
               Pra me fazer aquietar o espírito
               E que o teu silêncio me fale cada vez mais
               Porque metade de mim é abrigo
               Mas a outra metade é cansaço

               Que a Arte nos aponte uma resposta
               Mesmo que ela não saiba
               E que ninguém a tente complicar
               Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
               Porque metade de mim é platéia
               E a outra metade é canção

               E que a minha loucura seja perdoada
               Porque metade de mim é amor
               E a outra metade... também

domingo, 1 de maio de 2011

ANO NOVO, VIDA NOVA (Parte final)

-         Gostaria que você pudesse vir comigo – comentou, ainda abraçada a ele.
-         Eu também. Mas demorou um bocado pra que as coisas se ajeitassem por aqui... Tão cedo não vai dar pra sair.
-         É. Eu também vou demorar um pouco a me acostumar longe de todos. Vou sentir falta do meu quarto, das minhas coisas... Mas, daqui a alguns meses vou estar adaptada. Tem tempo... Ainda mais que são quatro anos de curso e...
-         O quê?! – cortou Rogério. – Quatro anos? Não, Mel, assim não vou aguentar. Você acha que vou esperar todo esse tempo pra me casar com você?
-         Mas, Rogério, é essa a duração mínima do curso. Depois, tem a especialização...
-         Para o inferno com a especialização, curso e todo o mais. Case-se comigo, Mel, e esqueça essa história toda – irritou-se ele, alterando a voz.
-         Será que você não entende que estou procurando o melhor pra mim... Não vou me casar com “seu” ninguém sem antes ter uma profissão reconhecida. Nada vai me tirar esta ideia da cabeça – retrucou, aos berros, também.
-         Muito obrigado pela parte que me toca. Eu pensei que o melhor pra você fosse ficar ao meu lado, se casar comigo...
Cessaram a discussão neste ponto e tornaram a admitir um silêncio perturbador. Rogério retomou o fôlego, antes de continuar.
-         É a sua última palavra?
-         É... eu pensei que você fosse mais compreensivo e...
-         Corta, Melina. Chega! Eu te amo e esse casamento significava demais pra mim. Só que no prazo máximo de um ano. Nunca suportaria ter que esperar mais três... Não vou dizer mais nada pois sei que o desgraçado vestibular é mais importante. Não sei o que vou fazer sem você, de agora pra frente. Sem graça, é assim que tudo vai ser. Só mais coisa: nenhum outro “cara” vai te amar como eu. Nunca senti isto e nem nunca deixei você perceber, mas você vai ter provas do que estou dizendo. E talvez até desista deste maldito exame... – concluiu e saiu, desnorteado, deixando-a surpresa e preocupada com a próxima atitude que ele pudesse tomar.
Vagou pela cidade, onde o movimento era intenso. Numa praça, um verdadeiro carnaval antecipado, em comemoração ao novo ano que ia nascer. Sentou-se num banco afastado e ficou observando as estrelas que cintilavam tímidas por detrás de rastros de nuvens que a chuva poupara. Um turbilhão de pensamentos assolou sua mente, transformados em lágrimas que não caíam desde a infância. Mesmo assim, se sentia como um menino que perdera o doce. Pior: como um mendigo que perde o dinheiro mirrado da comida. Melina era sua vida, praticamente. Só ela o entendia, só ela não se importava com sua condição de homem rústico e sem cultura. O que ia ser dele, agora? Esqueceu emprego, família e o resto, pensando só numa decisão.
Na manhã seguinte, seu pai o encontrou embaixo da velha árvore do quintal, onde tinha feito um balanço para o filho menor. Pendurado, com a corda do brinquedo ao pescoço. No tronco, um bilhete com a máxima já tão antiga quanto a árvore: “Ano novo, vida nova”.

"O direito à literatura"(fragmento)

Apresentamos, de forma objetiva, a visão de Antônio Cândido, grande historiador, analista e professor de Literatura: (...) "Chamarei de...