domingo, 21 de agosto de 2011

O FIM DA ÚLTIMA DONZELA (Parte 2)

          O ermitão me tocou no ombro e me disse que a velha matriarca me esperava. Entrei na casa de decoração simples, mas muito bom gosto, e fui recebido por ela, na sala, postada de costas para mim. O sábio me fez um gesto para que calasse e apenas a ouvisse, pois a mesma não me achava digno de ser olhado no rosto.
          Contou que depois que fui banido, Blanca sofreu muito, ficou doente de saudade e quase morreu. Tinha algumas coisas sobre a constituição orgânica daquele corpo frágil e belo, que eu desconhecia, e que tornavam delicada a sua saúde. Depois de algumas semanas de quase completo alheamento, motivado seguramente pelas lembranças de todos os acontecimentos tristes decorrentes da minha presença no vilarejo, a abuela e o ermitão conseguiram fazer com que ela reagisse e passasse a se sentir motivada para continuar a sua vida. A notícia da chegada de uma criança causou euforia na comunidade inteira, mesmo sabendo-se que o fruto vinha de uma atitude renegada por todos naquele lugar. Havia muito tempo que todos esperavam o nascimento de uma criança, até como símbolo de prosperidade. Por isso o bebê de Blanca foi muito amado e criou-se uma expectativa enorme através daquela gestação.
          Nesse instante do relato, notei que a voz da mulher estava ligeiramente embargada, e por meu lado eu queria falar, gesticular, expressar todo o meu contentamento e meus questionamentos sobre tudo aquilo, sobre a mãe de meu filho, sobre ele próprio, mas o ermitão me segurou pelo braço e me fez um gesto para que silenciasse. A pausa revelou certo tremor por parte da velha abuela e, não fosse o fato de que ela permanecia de costas, eu juraria que chorava.
          Talvez por conta das circunstâncias em que foi gerada, a gravidez daquela criança não foi tranqüila. Blanca se sentia mal, com dores e incômodos freqüentes, o que a deixava fraca e debilitada, sendo cuidada constantemente pela abuela nas horas sofridas e nas noites mal dormidas. Nos últimos meses, com a aproximação do nascimento, Blanca melhorou consideravelmente e todos se animaram com a idéia de que o parto seria menos complicado do que a gestação. Mas o ermitão e a abuela já previam as conseqüências e, embora o menino fosse forte e saudável, a mãe acabou falecendo.
          A abuela, nesse ponto, fez uma nova pausa e desatou a desabafar todo o ódio que sentia por mim. Que Blanca era a única coisa boa que ela possuía nesse mundo, que foi como se arrancassem um pedaço dela, que eu era culpado por tudo aquilo, que se eu tivesse um mínimo de preocupação com a minha alma, deveria ir embora e deixá-la em paz, com a sua dor, com o seu sofrimento atroz e sem fim. O ermitão me puxou pelo braço e me levou dali, enquanto eu também chorava e procurava um lugar onde me apoiar, pois fraquejei fisicamente depois do impacto daquelas revelações. Blanca morta? Também de mim senti que cortava-se um membro, um órgão, uma parte... Morta? Por causa da gravidez que eu causei? Precisava me acalmar.
          Começou a cair uma chuva fina e eu pedi ao ermitão que me deixasse ali, no meio do caminho. Eu tinha que pensar, mas não conseguia. Sentei-me na beira da estrada, em cima de uma pedra, e deixei a chuva molhar o meu rosto, gotas se confundindo com as lágrimas grossas que rolavam. Fui tombando em direção a relva que havia em volta, meu rosto tocou o chão e eu continuava a tremer convulsivamente, desesperado. Após alguns momentos assim, senti uma mão que me pegava no braço e me ajudava a levantar. Era o ermitão, que me levou até sua casa, já tinha feito um chá de ervas bem forte, o que ajudou a me acalmar. Essa acolhida me deu esperança de que ele sabia onde estava meu filho e podia me revelar. O velho ficou calado durante todo o tempo em que tomávamos o chá. Ainda chovia e logo anoiteceu. Eu também assumi uma atitude reflexiva, mas com questionamentos avassaladores. Meu filho teria então quinze anos. Onde se encontrava? Com a abuela, certamente não. Vivendo com alguém da cidade?Talvez.
          Quando o dono da casa resolveu falar, sempre lacônico, contou que a matriarca não impediu que, aos doze anos, o garoto fosse embora de sua casa. Ele havia resolvido, depois de muitos passeios e muita convivência diária, que iria morar numa aldeia indígena, próxima ao vilarejo. Continuava a visitar a velha senhora, permanecendo forte e saudável, feliz com o estilo de vida que tinha escolhido. No final da conversa, depois de comermos uma refeição frugal, acho que o efeito dos chás me fez sentir um relaxamento profundo. Ou talvez isso se misturasse ao cansaço de todo aquele mistério desvendado durante esse dia. A noite foi de sono pesado e cheio de sonhos agitados.

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi)

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