quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Crônicas de um lugar esquecido

O colecionador de chaves

O personagem usava roupas pesadas, de cores escuras, recobertas por um capote surrado, bastante desbotado. Na cabeça, um chapéu de tecido negro, e no pescoço, um longo cordão de metal claro, onde se penduravam dezenas de chaves de tamanhos e formatos diferentes. Não sorria muito, mas quando o fazia, seus dentes e o cordão eram as únicas coisas que se destacavam em meio aos tecidos que o envolviam. Chegou no vilarejo numa noite de calor abafadiço, e meia lua embaçada no céu. 
Foi direto ao único bar local, ainda aberto já que nem era muito tarde. Sua entrada causou, é claro, um murmúrio curioso e carregado de desconfianças. Seus trajes, seu meio sorriso, o isolamento no balcão denotavam a todos sua decisão de querer estar só, isolado, longe de fofocas e especulações. O dono do bar ficou sabendo que ele iria passar apenas uma noite, e precisava de um lugar para dormir. Como há muito não ocorria, o homem disse que ele poderia usar um quartinho que tinha nos fundos, com a condição de ir embora logo pela manhã. Quando se recolheu, ainda pôde ouvir o ruído das pessoas que permaneceram comentando sobre sua aparição. 
O que mais intrigava os moradores do pacato povoado era a existência daquele molho de chaves, pendurado no pescoço do forasteiro. E que, a cada movimento do suposto colecionador, faziam um barulho de metal perturbador. Que chaves seriam aquelas? Que portas abriram ou abririam? Para que viajar com aqueles objetos à mostra, como querendo transmitir algum recado, alguma mensagem enigmática? Essas e outras múltiplas questões se instalaram nas mentes e bocas de todos quanto se importavam com sua presença. Em muitos anos, nenhum estrangeiro vinha até aquela terra esquecida. O único conhecido que regularmente aparecia por lá era o velho mascate. E que, nos últimos tempos, também tinha rareado suas passagens por ali. Muitos habitantes mal dormiram à noite, incomodados que estavam com aquela figura estranha de chaveiro. 
No outro dia, o dono do bar ficou espantado com o que percebeu. Nunca mantinha o quartinho trancado a chave, mas foi assim que a porta estava, quando tentou chamar pelo colecionador. Depois de mexer na maçaneta, ele voltou aos seus afazeres e deixou para indagar sobre aquilo mais tarde. O forasteiro surgiu no balcão do bar, sempre silencioso, e resolveu tomar alguma coisa, antes de se ir. Sem olhar muito para o peculiar personagem, lembrou que a porta do cômodo nem sequer tinha chave, e chegou à conclusão que o próprio colecionador a havia fechado, por dentro. Depois que ele pediu para permanecer mais um dia e uma noite no vilarejo, as suspeitas do proprietário aumentaram: aquele homem era um perigo, já que conseguia fechar e abrir qualquer porta com seu molho. E, mesmo concordando com a solicitação do mesmo, sentiu-se estimulado a dividir sua preocupação com outros amigos, que frequentavam o bar. 
Resolveram testar o caráter do rapaz, inventando problemas com fechaduras de portas e janelas de algumas casas. A todos, ele conseguia resolver, utilizando algumas das chaves que trazia, sempre penduradas junto a si. Por que nunca se separava delas, tirando o cordão de metal do pescoço? Isso também se misturava aos questionamentos dos moradores, alimentando mais suspeitas...
Não sendo de muita conversação e mantendo uma postura distante, enfeitada de dúvidas, o colecionador passou a ser mais temido que respeitado. Chaves podem ajudar a abrir objetos, casas, caminhos... Mas que tipos de fechaduras aquelas chaves já não teriam aberto? Por quais casas, caminhos, lugares revelados aquele rapaz teria passado? Seria somente ele o dono daqueles objetos metálicos, tão significativos e, ao mesmo tempo, tão amedrontadores? 
O alcaide chamou-o para uma visita, no intento de descobrir a origem do estrangeiro e o motivo de tantas chaves. Ele concordou com o encontro, desde que não tivesse que contar sobre sua coleção. Não era de falar muito, mas apreciou a bebida que o outro lhe ofereceu, e respondeu suas perguntas com monossílabos. Esse laconismo irritou o dono da casa, e também o fato de não conseguir saber sobre o molho. O homem saiu de lá tranquilamente, num momento de distração do seu interlocutor, que havia trancado a porta da sala, deixando-o admirado com a façanha. 
Para muitos, o forasteiro já tinha se demorado e causado preocupações o suficiente. Um grupo de moradores foi convocado para levá-lo até a saída da cidade. Quando iniciaram a perseguição ao homem, o mesmo fugiu e adentrou uma velha torre do sino, abandonada, que existia na entrada do povoado. A porta estava trancada, e passou a ser vigiada constantemente, até que o homem tivesse sede ou fome, e saísse de lá. Quando a noite caiu, um pesado ariete foi usado para arrombar a passagem. Para espanto geral, o colecionador de chaves não foi encontrado. Havia sumido, sem que se ouvisse sequer o ruído metálico de sua misteriosa coleção.

César Pavezzi

sábado, 6 de outubro de 2018

Crônicas de um lugar esquecido

O filho do rio

Depois da inundação ocorrida no ano anterior, aquele outono aumentava o mormaço, e a sensação de ventos quentes incomodava os habitantes do vilarejo, mais parecendo persistência de verão. Algumas mulheres, que usavam as pedras do rio para lavarem suas poucas roupas, também aproveitavam a água para se refrescar naqueles dias. Não havia cantigas, ladainhas ou ruídos verbais de suas bocas. A atividade era silenciosa, dando vez apenas ao barulho mínimo provocado pela correnteza mansa, entre as pedras e nos barrancos. Era um quadro rotineiro e monótono que se repetia todas as semanas, só não ocorrendo em dias de chuva ou muito frio. 
O cesto veio descendo, lentamente, justo pelo lado em que as mulheres permaneciam nas suas esfregações e bateções de roupas. Distraídas, preocupadas em terminar logo o trabalho, demoraram-se a perceber que o balaio continha alguma coisa viva, que se movia e emitia um vagido, quase um choro, mas mais suave e balbuciante. Uma delas conseguiu, jogando um lençol enrolado, trazer o recipiente para perto. Quando olhou em seu interior, havia uma criança, muito pequena, corada, olhos vivazes e curiosos, movendo insistentemente mãozinhas e pezinhos bem feitos. Aquilo causou um alvoroço total no grupo, que, entre incredulidade e espanto, não sabiam exatamente o que pensar. De onde teria vindo aquele anjo, aquele inocente? Quem teria abandonado tão linda e saudável criaturinha? Era um milagre que não houvesse caído do cesto e sido devorado por algum animal do rio ou das margens... 
Depois de constatarem que era um menino, levaram o cesto para a cidade e, como já esperado, o acontecimento se espalhou como rastilho de pólvora, na comunidade inteira. Todos começaram a chamar o menino, em suas conversas e referências ao acaso admirável daquele dia, de "filho do rio". Mas o significado daquilo começou a ecoar nas mentes de todos os adultos do lugar como algo que traduzia certas crendices e superstições, típicas da mentalidade local: seria o menino o fruto de uma premonição positiva, de bom agouro? Ou esse aparecimento denotaria maus presságios? Começou-se um boato de que uma criaturinha tão bonita e saudável, ao menos na aparência, não poderia ser portadora de más novas ou fatos ruins. Ao contrário, somente deixava transparecer bondade e felicidade, naquele semblante angelical, do qual emanava vívida pureza. 
Até que, uma semana depois, tendo ficado aos cuidados da mulher que puxara o cesto para a margem, começaram a ocorrer estranhas mudanças no comportamento das pessoas que faziam parte daquela família. Numa discussão mais acirrada com o marido, por conta da falta de comida, o homem foi acometido de um mal súbito e não conseguiu sobreviver, mesmo sendo forte e jovem. Ninguém entendeu aquela morte. Detalhe inusitado: mesmo no velório do pobre homem, o bebê mantinha, o tempo todo, um sorrisinho maroto na face. Depois disso, ainda impactada com o fato, a mulher passou a guarda do "filho do rio" para outra família. E assim, em cada casa onde o menino era recebido, sempre acontecia algo negativo, enchendo os familiares de desconfianças, pois nunca, desde seu achado na beira do rio, o garoto tinha chorado. Somente se desenhava em seu rostinho aquele sorrisinho perturbador, mesmo nas ocasiões mais fúnebres. 
O alcaide, por fim, resolveu se responsabilizar pela criança, e o adotou. Quando tentou dar-lhe um nome, o menino, contrariando sabe-se lá qual lei da natureza, pareceu estar encarando o tutor nos olhos, com uma expressão séria, sem sorrir. O alcaide e sua mulher, absolutamente aterrados, aumentaram seu estupor ao ver que, depois desse momento, o tal "filho do rio" voltou a exprimir aquele sorrisinho provocador novamente. A esposa passou mal, teve um desmaio prolongado e, depois de muita abanação e tapinhas no rosto, voltou a si, completamente amedrontada. O marido não teve dúvidas: o rio trouxe, o rio leva. Ninguém mais voltou a falar sobre o menino, depois que o cesto foi visto levado, novamente, pela correnteza do rio.

César Pavezzi


"O direito à literatura"(fragmento)

Apresentamos, de forma objetiva, a visão de Antônio Cândido, grande historiador, analista e professor de Literatura: (...) "Chamarei de...