sexta-feira, 16 de março de 2018

Crônicas de um lugar esquecido

A casa sem portas e sem janelas

Dizem que janelas são os olhos de qualquer casa, por onde se pode avistar coisas exteriores... Ou, inversamente, servir de entrada para olhares indiscretos, curiosos, invasivos. Assim era aquela moradia estranha, em que o construtor, seu próprio habitante, tinha-a feito sem portas e janelas. Não achou necessidade de colocar tais barreiras ou, como muitos querem, recursos de segurança e privacidade. Num lugar onde roubos e furtos não aconteciam, e onde todos ainda tinha pudores e reservas, quanto à intimidade, era fácil viver numa casa como aquela.
O maior estranhamento, porém, residia no fato de que somente a casa do homem, que havia colocado portas e janelas em todas as outras que construíra no vilarejo, não tinha esses acabamentos. Como sempre fora justo ao cobrar pelos serviços que realizava, encontrou nos poucos cidadãos do lugar um respeito e muita compreensão por essa atitude diferente...
Ninguém invadia a casa, ou manifestava intenções de conhecer o seu interior, em todos aqueles tempos. Havia na mente de muitos a desconfiança de que podiam acontecer coisas misteriosas e assustadoras no seu interior. Crianças então, que tem um instinto natural de curiosidade, sequer passavam em frente à construção. Surgiam boatos de que o homem dominava seres e energias misteriosas com os quais convivia, em especial à noite, quando a escuridão só permitia ver alguns poucos acenderes e apagares de lumes, em muitos dos cômodos da casa. O que seriam aqueles brilhos e luzes foscas? Nenhum dos que já tinham visto ousavam questionar diretamente ou investigar junto ao construtor solitário.
Enquanto viveu ali, sem ter suas particularidades compartilhadas, o homem continuou a levar sua rotina de ajudar as pessoas a construir suas casas e manter uma postura discreta. Se falava, era apenas para concordar sobre um combinado ou outro relativos ao serviço, e sobre algum caso breve, envolvendo outras moradias que se lembrava ter levantado. E sempre se recolhia ao anoitecer, com seus lumes e brilhos, tão discretos quanto seu jeito de viver. 
Quando, um dia, o homem sumiu, alguns vizinhos resolveram entrar na casa para tentar entender o acontecimento inexplicável. E se maravilharam ao constatar que o construtor fazia experiências com pirilampos, mariposas e várias espécies de insetos que emitiam brilho nas noites. Havia muitas plantas e flores onde os mesmos se abrigavam e se alimentavam, livremente. E todos começaram a compreender, emocionados, porque ele tinha a necessidade de não impedir a entrada dos bichos em sua casa, já que significavam consolo e companhia no breu das horas.

César Pavezzi

"O direito à literatura"(fragmento)

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