sábado, 29 de outubro de 2011

OS VICIADOS (Cena quinta)

CENA 5:- Dois estudantes conversam, enquanto um deles mexe no celular:

Jairo (mexendo no celular):- Que é que te preocupa, cara?
Moacir:- Estou me achando muito estranho... Estou lendo...
Jairo (cortando a fala, sério):- Você o quê? Cara, não vai me dizer que você teve uma recaída?! (continuando a mexer no celular).
Moacir (triste e pensativo):- É...Não foi muito profunda, mas estou me sentindo interessado por poesia... Livros de poemas...
Jairo:- Você deve ter pirado... Vou fingir que não escutei. Quem mais sabe disso? (segue usando os botões do celular).
Moacir:- Ninguém... Tenho lido escondido. Consegui um exemplar do Vinicius de Moraes e outro do Fernando Pessoa.
Jairo (espantado, mas ainda teclando no celular):- Espera aí: se você está viciado nos livros desses caras, você ainda quer enganar que não é profundo?!
Moacir:- Sei lá... Queria que você me ajudasse a compreender, me apoiasse de algum jeito...
Jairo:- Apoiar? Você ‘tá louco? Você tem que se esforçar pra sair dessa... Cara, cadê o seu celular? Cadê os jogos que você curtia? Cadê aquele cara tarado por esporte? Faz alguma coisa pra sair desse vício, meu! (e volta a mexer no celular).
Moacir:- Promete que não vai contar nada pros meus pais?
Jairo:- Se você prometer que vai se tratar, não... E outra, já pensou se meus amigos soubessem que meu melhor amigo anda metido com poesia? Ainda mais poesia... Coisa que afrouxa os sentimentos e outras coisas aí? (e gesticula ridiculamente, enquanto sai de cena).
Moacir (com ar desconsolado):- Amigos... Deve ser porque o livro não tem botão pra apertar... Deve ser... ( e vai embora lentamente e de cabeça baixa).

(In: Os Viciados, dramédia em quadros cotidianos, de César Pavezzi.)

domingo, 23 de outubro de 2011

OS VICIADOS (Cena quarta)

CENA 4: Uma universitária, na biblioteca, conversa com a funcionária:

Marisa (entediada e sarcástica):- Quer dizer que aqui é uma biblioteca e vocês não têm livros?!
Olívia, a funcionária (séria e irônica):- Não, meu bem, você está equivocada. Temos todo o acervo técnico e científico que você precisar, incluindo periódicos informativos e de interesse acadêmico, menos livros de literatura nacional e internacional... Esses últimos são os causadores do vício que a nossa sociedade precisa erradicar... Pelas questões que vêm provocando ao longo dos tempos...
Marisa:- Minha senhora, pois se é justamente desses que eu preciso para minha pesquisa... Ao menos alguns exemplares de romances brasileiros arquivados esse lugar deve ter ?!
Olívia (enfática):- Senhorita, sinto muito, lamento profundamente, mas não vamos poder ajudá-la em suas pesquisas, porque esse material só existe em arquivos secretos ou no mercado paralelo... Além disso, muitos estudantes que pareciam bem intencionados, como a senhorita, cometeram desvarios com esses materiais, no passado...
Marisa:- Sei... Que espécie de desvarios?! Por acaso eles...leram atenta e cuidadosamente esses romances? Se assim fizeram, era justo que assimilassem alguns significados importantes das obras, não acha?
Olívia:- Talvez...Mas as conseqüências foram desastrosas...Muitos caíram no vício e tiveram que receber tratamentos especiais. E de nossa parte, concluímos que o que eles queriam, em realidade, era se viciar por completo.
Marisa:- Já vi que vocês não confiam em pessoas sérias mesmo. Eu só queria alguns volumes de Shakespeare e Gil Vicente para... pesquisar. Até nunca! (e sai, enquanto Olívia mostra uma careta de desconfiança).

(In: Os Viciados, dramédia em quadros cotidianos, de César Pavezzi).

domingo, 16 de outubro de 2011

OS VICIADOS (Cena terceira)

CENA 3: Marido chega do trabalho e conversa com esposa:


Patrícia (receptiva e atenciosa):- Oi, amor. Ih, que cara é essa?

Maurício (sério e com ar cansado):- Oi... Levei uma chamada do patrão e uma advertência no trabalho... Hoje não é o meu dia.

Patrícia:- Deixa eu adivinhar: o chefe te pegou... lendo, na hora do cafezinho. Acertei?

Maurício:- É, e o que tem isso demais? Fui adiantar mais um capítulo da história que comecei a ler, e ele disse que estava voltando ao vício e que eu precisava me tratar. Eu, me tratar? Pode um negócio desses?

Patrícia (compreensiva):- É, meu querido, mas você disse que não ia mexer com isso no local de trabalho... Tudo bem que se trata de Machado de Assis, mas creio que você anda exagerando...

Maurício:- Pois é, mas é que achei que não teria problema... E nem vou te garantir que vou parar... Sei que se quiser, eu paro, mas é preciso muita força de vontade pra abandonar esse hábito, digo, vício, assim, de uma hora pra outra.

Patrícia:- É, mas vê se você se controla, porque algumas autoridades estão de olho em certos comportamentos e já estão até divulgando classificações: uns são moderados, outros intensivos, e tem os crônicos, que dizem ser o pior grau de viciados.


Maurício:- Pode deixar. E cadê o Paulinho?

Patrícia:- Lá no quarto... Imagine, procurando nos livros técnicos de leis e estatutos onde está escrito que as bibliotecas em geral não podem mais manter os acervos de livros de literatura nacional e internacional...

Maurício:- Esse é o meu garoto... Sétima série e já com esse espírito leitor. (e saem para o quarto do garoto).


(In: Os Viciados, dramédia em quadros cotidianos, de César Pavezzi).

domingo, 9 de outubro de 2011

OS VICIADOS (Cena segunda)

CENA 2: Dois namorados discutem, numa praça:

Michele (irritada e insistente):- Você prometeu, cara... Você disse que ia parar com isso...
Cássio (tentando acalmá-la, mas sério):- Foi só naquele dia, mina. Pô, será que    você não confia em mim... Não aconteceu de novo, eu juro.
Michele:- Como não? Eu sei que você foi visto hoje pelo seu primo com outro livro... Não tenta me enganar... E esse é pior do que o outro: um romance da Agatha Christie. O que você pretende?!
Cássio:- Qual é o problema? Foi só uma pequena recaída...
Michele:- Pequena?! De Stephen King pra essa autora... Você deve estar brincando. Eu ‘tô muito preocupada com você. E se seus pais descobrirem?
Cássio:- Não vão saber... Gata, fica tranqüila que isso não ‘tá me fazendo mal algum... Pelo menos, eu não sinto.
Michele:- Mas, e eu?! Você pensa que é fácil saber que você perde tempo com isso e não vai me visitar? E a vergonha, se uma de minhas amigas descobrirem que namoro um viciado?... E que nem quer se ajudar?...
Cássio (tentando abraçá-la):- Você tem que compreender... Eu preciso disso. Minha mente não pode passar sem isso, nem meu coração...
Michele (afastando-se, alterada):- Não compreendo... Eu não sou assim e nem vou querer um namorado desse jeito. Não posso confiar em alguém mais... mais... lido do que eu. (e sai, apressada).
Cássio (reflexivo):- Aposto que é só porque a autora é uma mulher...(e sai, pelo lado contrário).

(In: OS VICIADOS, dramédia em quadros cotidianos, de César Pavezzi.)

sábado, 1 de outubro de 2011

OS VICIADOS (Cena primeira)

CENA 1: No Supermercado, duas donas-de-casa conversam:

Teresa (séria e confidente):- Vi-ci-a-do...
Helena (muito interessada):- Em quê? Bebida? Cigarros?
Teresa:- Pior... livros de literatura!
Helena (boquiaberta e espantada):- Nossa...Nem me fale...Ele também?
Teresa:- Também, também... Dizem que foi pego com um exemplar do  Drummond, aquele poeta, no meio dos materiais de escola. Você vê, um menino tão educado, tão centrado, ninguém nem desconfiava...
Helena:- Que desgosto pra uma família, não é mesmo? E agora, o que vão fazer por ele?
Teresa:- Ouvi dizer que vão mandá-lo pra um daqueles espaços em que usam terapias alternativas pra tentar a cura... Sabe: mais horas de televisão, mais jogos de computador, mais tempo no videogame, essas coisas...
Helena:- Que terrível esse vício, não? Mesmo com todas essas outras atividades, não dá pra confiar que uma hora alguém da família não acabe sendo dominado... Fora os que tem aquelas recaídas....
Teresa:- Vire essa boca... Meu cunhado teve a tal recaída... Apareceu em casa com um livro de contos do Guimarães Rosa... Foi um Deus nos acuda: justo o Guimarães Rosa...
Helena:- Pois é. Eu também tenho estudado várias informações sobre esse vício de leitura, até pra prevenir certas coisas lá em casa... Nunca se sabe...
Teresa:-  ‘Tà certíssima. A gente tem que cuidar bem do que é nosso, em especial a família. Agora, já vou indo... Tenho que buscar meu filho numa Lan-House. Até qualquer dia.
Helena:- Tchau, amiga. Até. Também tenho que pegar minha filha no shopping. (e se beijam, em despedida).

(In: OS VICIADOS, dramédia em quadros cotidianos), de César Pavezzi).

"O direito à literatura"(fragmento)

Apresentamos, de forma objetiva, a visão de Antônio Cândido, grande historiador, analista e professor de Literatura: (...) "Chamarei de...