sábado, 21 de maio de 2011

LEMBRANDO A CANÇÃO (Parte final)

Há três semanas, depois de quase haver esquecido a “tal”, fui visitar uma velha tia, em Ouro Preto, e acabei encontrando com essa advogada. Foi naquele final de semana que eu voltei atrasado e acabei levando bronca por não fazer o programa de domingo...
- É, desculpa mais besta aquela de dizer que não havia encontrado passagem, que não tinha mais ônibus. Eu logo sabia que tinha mulher no meio. – tinha um ar de repreensão.
                   Foi o melhor encontro da minha vida... Passeamos pelas cidades históricas, conheci detalhes incríveis de Minas. Imagine que havia um bar, que nós visitamos na madrugada de sábado para domingo, cujo proprietário era apaixonado por poemas simbolistas e ficava-os recitando a noite toda, de mesa em mesa. O ambiente, à luz de velas e bastante rústico, era perfeito para a inspiração do homem. E esse foi só um detalhe das coisas gostosas que curtimos juntos...
- Quer dizer que você esteve fazendo este mistério todo porque queria, discretamente, proteger a reputação da loira... Como é mesmo o nome dela?! – interessou-se Fred, num tom de malícia.
- Calma, amigo. Não nos dissemos os nomes. A gente se tratou por “advogada” e “jornalista” durante todo o tempo. E, acredite, eu achei esse jogo muito excitante. Com tudo o que a gente ‘tava vivendo, que importância tinham nomes, apelidos, sobrenomes?!
                   Pois bem, nós não tínhamos ido até Belo Horizonte ainda e só chegamos lá no domingo á noite. É engraçado como quando você está envolvido com uma situação, você se esquece de outros compromissos... Ela era muito atraente e nosso papo, interminável. Um assunto puxava outro e creio que só não falamos de nosso passado. Não sabia de onde aquela mulher vinha, mas em vários momentos tive a sensação de que já a conhecia há muito tempo. Quando entramos no apartamento, fiquei admirado com o conforto e a sobriedade de estilo. Perguntou se eu queria tomar um banho, enquanto preparava alguma coisa para o jantar. Mostrou-me as dependências do lugar, me indicando o banheiro.
- Vamos, doutor Plínio, conta logo por que essa mulher ‘tá te perturbando tanto. – interrompeu Frederico, ansioso. – Se for pra dizer que transou com ela, nem precisa continuar...
- Aí é que está o segredo: não transei... Não fomos pra cama. E eu já digo por quê.
                   A ducha me pôs a pensar como tudo estava sendo tão incrível. Tinha percebido que ela morava sozinha, devia ser solteira e independente. O tipo de mulher com quem todo homem sozinho gostaria de se envolver... Usava um roupão de seda quando me entregou o copo com uísque e me disse que também ia tomar banho. Sentei-me no sofá da sala, ouvindo uma música suave e relaxante que tocava. Som de sax era realmente muito sensual naquela ocasião. Foi quando percebi alguns porta-retratos numa estante e resolvi me aproximar para ver os rostos que eram caros à ela. Um deles tinha uma senhora com a moça, em idade adolescente, nos braços. Senti um choque emocional naquela hora... A senhora era a minha mãe! E tive a confirmação da coincidência quando observei a dedicatória no canto inferior: “Para minha princesa, com carinho. De sua mamãe: Marta”.
                   Fui tomado de horror, uma espécie de pânico crescente, que me fez afastar das fotos cada vez mais. Corri até o quarto, peguei minhas coisas e nem me despedi. Minha “irmã” continuava no banho. A possibilidade de aquela coisa execrável chamada incesto ter acontecido, já me deixava com nojo de mim mesmo. O resto, ou a continuação de tudo, são as chamadas insistentes dessa garota, querendo me ver... Talvez até esteja apaixonada.
- Você tem certeza disso tudo? – espantou-se Fred, sério.
- Claro que sim. Aliás, ela tem muita coisa na expressão que lembra minha mãe... Depois daquilo, venho refletindo e me lembrei que entre as fotos deu pra reconhecer o homem que estava com minha mãe na cama, quando eu tinha sete anos. Minha irmã, Fred, calcule...É isso o que ‘tá me atormentando. Bonita, inteligente, mas filha da minha própria mãe.
- ‘Tá certo, ‘tá certo. É uma situação complicada, mesmo... Mas você já pensou que talvez ela nem sonhe que você exista? E que depois de tantos anos da morte da sua mãe, seria até uma boa ela saber que tem um irmão, ou meio-irmâo? – sugeriu ele, tentando me tranquilizar.
- Aí é que está: se ela não sabe nada sobre mim, será que vai acreditar na coincidência?
- Sabe, Piti, posso entender que você tenha vergonha de ter sentido desejos por sua própria irmã. Agora, não querer dizer a verdade sobre tua história pra ela por medo, isso eu não entendo, não. – disparou, com franqueza. – Vamos lá, meu irmão, encara essa de frente... Já imaginou: você tem uma irmã, cara? Isso é lindo. Ou não é?
- Não sei... Preciso pensar mais... Analisar.
- Bom, vamos indo que já está na hora. Depois a gente fala mais sobre isso.
- É... É isso aí.
                                               *       *       *

                   Fui procurar um analista, no dia seguinte. Coisa que eu devia ter feito há muito tempo. A primeira sessão foi aliviante e me convenci que tinha dado um grande passo para melhorar meu convívio comigo mesmo. A “tal” loira não ligou mais, mas decidi falar sobre minha meia-irmã ao psicólogo. Ele era um profissional bastante consciente do trabalho que fazia e me proporcionou descobrir que, em verdade, eu nunca tinha perdoado minha mãe pela “traição” a meu pai. Minha identificação com a figura de papai me encheu de recalques com relação àquele lance da infância. Era como se eu próprio houvesse sido traído, daí o ressentimento dirigido à velha. Ressentimento este que estava sendo transferido para o que representava a figura da minha irmã. Fruto da traição de minha mãe com outro homem, essa moça não cabia na estrutura das minhas relações de afeto.
- Mas ela não tem nada a ver com as decisões que tua mãe tomou, Plínio. – observou Fred, quando comentei as descobertas que vinha fazendo, graças à terapia.
- Superficialmente, eu sei. Mas preciso trabalhar melhor essas idéias. Preciso de tempo... Aliás, estou me sentindo mais preparado para entender tudo isso.
                   Um dia, conversei com a secretária do meu analista, enquanto esperava. Ela estudava psicologia e me deixou encantado com o desembaraço e a simpatia durante o nosso papo. Depois de um tempo, fomos jantar juntos e passamos momentos muito agradáveis. A relação com o último namorado tinha sido meio conturbada, pois ela detestava tipos machistas, ainda que tivessem cara e corpo bonitos. Ia se formar naquele ano e acabou me convidando para um almoço em família, no domingo próximo. Fred estourou de rir, quando soube.
- Almoço em família, é? Sei. Depois o pai vai insinuar um noivado, compromisso, aquelas coisas...
- Deixa de ser apressado, cara. E quer saber do que mais: acho que estou até precisando disto. Essa coisa de família, reunião de parentes, conhecer os pais, me agrada. – resolvi.
- Bom, tem gosto pra tudo. Você é quem decide o que fazer da tua vida.
- Se você quiser, pode vir com a gente. Quem sabe se ela não te apresenta uma irmã? – sugeri, num tom de ironia.
- Engraçadinho... E por falar em nisso, já se decidiu a procurar a tua?
- Não, ainda não. Tenho pensado muito, acredite. Depois, ela não me ligou mais...’Tô achando esquisito.
- Também, depois de todas as descartadas que você deu. Agora é a sua vez... E quer um conselho: não demore muito mais.
                   Eu voltei ao estúdio com aquela sensação de desconforto a me incomodar.
                                               *        *        *

                   Cheguei em Belo Horizonte emocionado e cheio de tremores adolescentes, que há muito não sentia. Sem avisar, não tinha ninguém me esperando. O porteiro do prédio disse que a senhorita Lisandra estava no tribunal. Estava atuando como advogada de defesa num caso muito difícil.
- Mas, como é o nome do senhor?
- Plínio... Por quê? – estranhei a curiosidade do homem.
- Acho que ela estava praticamente esperando a sua visita... Parece muito feliz por saber que tem um irmão como o senhor. Tem falado muito sobre isso.
                   Nem esperei que ele continuasse. Então ela já sabia de tudo. Parei em frente ao prédio do tribunal, mas não consegui vaga para estacionar. Um tanto ansioso, quase atropelei um gari que passava naquele instante. Tive que deixar o carro a várias quadras dali e corri até chegar na porta da sala de audiências. Entrei no exato momento em que o juiz proclamava a sentença. O réu foi considerado inocente.
                   Quase empurrei as inúmeras pessoas que cumprimentavam Lisandra pelo bom desempenho. Quando nossos olhos se encontraram, começamos a chorar e nos abraçamos. Ninguém podia imaginar que eu a estava abraçando por algo muito mais importante do que uma brilhante defesa.
(Este conto faz parte do livro: PÉROLAS DE AMADOR, de minha autoria - César Pavezzi)

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