domingo, 15 de maio de 2011

LEMBRANDO A CANÇÃO (outro conto meu)


                   Mais uma noite cheia de participações pelo telefone:
- Quer ouvir qual sucesso?! – perguntei, pela quadragésima vez (se não me engano).
A voz do outro lado era divertida, mas ao mesmo tempo, ansiosa. Queria uma música agitada, justificando que a noite estava muito linda. Fiz sinal para o técnico soltar o som e me despedi, como sempre acontecia.
Enquanto a música rolava, fiquei olhando o céu pela vidraça da sala, ao lado do estúdio. O programador falou comigo:
-    E aí? Preocupado?
-                                                    - Um pouco. Fico me perguntando se não dei bandeira demais, Fred... Essa garota ainda vai me fazer perder o emprego.
-                                                    - Ih, que papo é esse?! Você tem sete anos de casa, cara. Não tem que se preocupar com isso, não. Fica frio. Só acho que você tem que tomar cuidado numa próxima... Sabe do que mais? Ela não vai ligar pra cá, não. Se ‘tá tão interessada em você, vai ter um mínimo de bom senso, antes de te perturbar no local de trabalho.
-                                                    - Aí é que está o problema: não a conheço tanto pra ter essa tua segurança... Tomara que não ligue mesmo. – eu tinha um sentimento desagradável de dúvida.
-                                                    - Bom, depois de trabalhar, a gente sai aí, tomar uns conhaques pra esquentar, e papear. Hoje ‘tá um frio dos diabos. – disse, esfregando as mãos.
-                                                    - ‘Tá legal. Vamos, que a música ‘tá no fim.
Menos de meia hora depois e aquela voz, meio rouca, quente, com o programa no ar. No ato, fiz sinal para Fred cortar tudo, sair do ar. Depois a gente inventava uma desculpa, um corte de energia, sei lá.
- É tão simples, você podia concordar em me ver... Um lugar tranquilo, só nós dois. Há muitas coisas pra gente conversar... – o tom era pausado, com uma certa dose de ironia.
- Tudo bem, mas ouça aqui: por que não liga pra minha casa?
- Você quase não para lá. Estou cansada de falar com sua secretária eletrônica... Então, onde a gente pode ir? – era uma intimação, percebi.
- Você está me prejudicando... Aqui é um local de trabalho. Liga pra minha casa no fim de semana... Eu preciso voltar ao programa.
- Se você quer assim. Domingo pela manhã. Um beijo. – e desligou, com a mesma suavidade de sempre.

*      *      *

                   Mesa de bar rotineira. Fred olhava para mim e na sua testa dava para visualizar: “E então?”.
- É, não adianta mesmo, né? A gente falou sobre um punhado de coisas, recordamos nossas farras, nosso começo no rádio... Mas sei bem o que você ‘tá com vontade de papear.
- Adivinhão! Olha, Piti, se você não tiver a fim de se abrir, vou entender... É que ‘tô te sentindo angustiado, pra baixo, cheio de preocupação por causa de uma mulher a mais... – ele tomou outro gole.
- Não é simplesmente uma mulher “a mais”, meu caro Frederico. A coisa é mais complicada do que você possa imaginar. – eu olhava para o copo e tentava encontrar na cor da bebida uma forma de contar a verdade.
- Então, ‘tá. Faz um tempão que nós somos amigos, eu nunca escondi nada de você... Essa história ‘tá me deixando muito curioso. Mas não é uma curiosidade de quem pensa ouvir pra fofocar ou fazer gozação, não. Talvez eu possa ajudar, fazer alguma coisa... Você ‘tá devagar esses dias, nem ir na festa dos disc-jóqueis você quis, ‘tá ficando nessa rádio onde a gente trabalha o dia inteiro... Que é que há, Piti? Vai se anular porque uma “perua” que você não quer, ‘tá pegando no seu pé?! – Fred se alterou um pouco.
- É, você ‘tá certo. ‘Tô fugindo de muitas coisas, sim. É pura fuga, pode crer... Reconheço que “pisei na bola” contigo também. Mas vou voltar a ficar numa boa, prometo. Não me leve a mal... Depois de domingo, eu resolvo tudo. Aí, me abro com você.
- Como é que é?! Quer dizer que tem hora certa pra confiar nos amigos, agora? Essa é nova!
- Calma, Fred. É tudo uma questão de tempo... Juro que é melhor você saber a história toda depois.
                   Ele jogou uma nota em cima da mesa e fez um gesto de despedida. Eu ainda fiquei por ali, observando as luzes da cidade e me sentindo impotente diante das coincidências fatais que envolvem os seres humanos.

*     *     *

                   No sábado, eu e Fred nos mandamos para o chalé do cunhado dele. A família tinha ido passar o inverno em outra cidade e cedeu as chaves do lugar.
- Nem pense que vou ficar aguentando essa tua “caretice” de depressão, não. – ele foi avisando, quando a gente se pôs a caminho. – Descolei duas “gatas” que são deliciosas... e inteligentes. Aliás, mulher burra na minha cama, nem rezando. Elas vão encontrar os “garotões” aqui, à noite.
- Você não perde o pique, hein, farrista! Desse jeito, até esqueço os problemas...
- Aí, “doutor” Plínio, assim é que se fala... È pra lembrar que Deus é grande e o descanso é sagrado. – tinha um ar de satisfação.
                   A tarde estava linda, com um sol maneiro de inverno. O carro era aconchegante, protegendo-nos do vento cortante nas árvores. A estrada tranquila me pôs a divagar... Aquele final de semana ia me livrar do nefando telefonema. A gente planejava voltar no domingo à noite. Eu, como sempre, ia direto pra rádio. O programa da noite me esperava. Livre daquela voz, adiando mais uma vez o encontro... Até quando? Até quando, Piti?
- Até quando, Piti? Ei, ‘tá me ouvindo, cara?! – era Fred, me trazendo de volta.
- Perdão, eu não ouvi mesmo. Que é que você quer saber?
- Até quando vai esse programa na madrugada?
- Fim do mês, eu acho. Bem, pelo menos na nossa mão... Depois, eles vão colocar o Dílson e o Nélio pra fazer... Por quê?
- ‘Tô cansado, rapaz. É um saco ter que trocar o horário de dormir... Além disso, ‘tava com uns projetos novos para a programação...Queria discutir com você, depois.
- Calma, Fred. É só me procurar e a gente conversa. Não quer me adiantar nada, agora?
- Não, vamos nos concentrar para o “programa” de hoje... Muito melhor. – e ele sorria, malicioso.

*      *      *

                   A minha expressão não deixava esconder nada. Pura decepção... É claro que Fred estranhou e me fez um monte perguntas. Diante da insistência dele, desabafei:
- Não consegui... É, em nenhuma das vezes. Nem na banheira, nem à noite, no quarto. Nem pela manhã, nem na piscina aquecida, nada. Queria saber? Pronto: já contei.
- Nadinha?!
- Não.
                   Ele ia estourar em gargalhada, mas se conteve. O carro rodava macio, na volta para a cidade.
- É sério, então, hein?! Olha, quer mesmo saber: a gente tem um tempo antes de ir pra Rádio. Vamos passar lá em casa, tomar uma sopa reforçada e você me explica tudo, direitinho. Ou vai querer adiar isto também? – tinha um tom meio desafiante.
-    Não, você ‘tá com a razão. É melhor mesmo me abrir com alguém, antes que eu estoure.
- Ótimo, é isso.
                   Enquanto ele preparava a tal sopa, eu justifiquei que sabia muito bem por que tinha falhado com a garota, no chalé. Era a maldita fixação na figura do telefone que interferia e estragava tudo.
- É, eu também já me frustrei, pensando em outra mulher...- admitiu, parando de cortar uma cebola.
- Pois é, dá pra você entender o quanto é duro pra mim. Mas isso não é o pior...
                   Passei a contar uma história muito antiga, de família, que Fred pouco ou nada conhecia. Minha mãe, quando eu tinha sete ou oito anos, separou-se de meu pai. Ele era bem mais velho do que ela e passou a procurá-la com menos frequência na cama. Eu adorava o jeito de intelectual bonachão do velho e não entendia por que minha mãe brigava tanto com ele. Um dia cheguei em casa da escola, sempre contente por ter coisas novas para contar e mostrar. Estranhei a porta da frente fechada àquela hora e decidi entrar pelos fundos. No corredor, ouvi gemidos profundos vindos do quarto de minha mãe e pensei, na minha inocência, que ela poderia estar passando mal. Quando alcancei a porta do quarto, só encostada, a fresta me mostrou que, em verdade, minha “progenitora” estava era se sentindo muito bem...
- Você quer dizer que havia um homem com ela?! – espantou-se Fred, sentando-se.
- E não era meu pai... Isto foi o mais triste pra mim.
                   Fiz uma pausa, enquanto tomava um gole de vinho, para depois continuar. Breve, meu pai descobriu o romance e, com dignidade e resignação, providenciou a separação. Foram meses de angústia e confusão para mim. É claro que preferi viver com meu pai. Mamãe me ligava, às vezes, e me visitava em duas datas, que ela achava importantes: meu aniversário e no Natal. Dez anos mais tarde, meu pai morreu e confesso que fiquei tentado a procurá-la... Mas meu senso de honra não me permitiu. É tão engraçada essa coisa de princípios, orgulho, dignidade.
- É, é uma coisa muito relativa – concordou Fred, mexendo a sopa.
                   Com o tempo, eu me acostumei a viver sozinho. Fiz minha faculdade e me tornei jornalista, graças ao incentivo de meu pai, que nunca descuidou da minha formação intelectual. Na festa da formatura é que começou o meu conflito com essas questões de princípio, moral e etc.
- Já sei, sua mãe te procurou pra te cumprimentar e pedir pra voltar a morar com ela? – arriscou Fred, cada vez mais curioso para saber o final.
- Não, o pior é que não. O lance foi outro...
                   Havia vários tipos de bebidas e pessoas na festa. Muita música rolando e, depois de certa hora, os casais começaram a sair do ambiente. Eu tinha sido mostrado a uma loira, estudante do primeiro ano de Direito e muito bonita. A gente começou a conversar sobre mercado de trabalho, perspectivas de futuro, essas coisas de quem vai iniciar a carreira. Não, não foi com ela que fiquei naquela noite, não. Foi com uma colega, que hoje trabalha na Rádio Cultura de São Paulo...
- A Joana Tales? – lembrou Fred, sorrindo.
- Essa mesma. Aliás, foi uma noite super gostosa, digna de dois sofridos formandos de Jornalismo...
                   Três anos depois que comecei a trabalhar na nossa Rádio (a gente ainda não se conhecia direito), uma noite eu fui fazer uma reportagem sobre um julgamento, em Campinas, e acabei passando o dia seguinte inteiro naquela cidade. Qual não foi minha surpresa ao perceber que a tal loira estava almoçando no mesmo restaurante que eu?!
- A mesma da festa de formatura? – quis confirmar Fred, ajeitando a mesa para a gente comer.
- Exato. Usava o mesmo penteado, tinha o mesmo ar charmoso e seguro daquela noite, e me reconheceu no ato...
                   Conversamos sobre o julgamento, descobri que ela não estava trabalhando em Campinas e que só tinha ido fazer umas compras. Quis insinuar um encontro, a sós, logo mais à noite, mas a mesma me disse que estava de partida para Belo Horizonte, onde morava. Um telefone na toalha de papel do restaurante e, momentos depois, eu ficava sozinho. Pensativo e ruminando a coincidência entre nós.
- Ela estava mais bonita? – quis saber Fred.
- Linda... Loira, mas sem exagero. Traços delicados, mas muito firme nas colocações que fazia... Simpática, sem ser vulgar. Enfim, uma pessoa muito agradável de se ver e ouvir.
                   Eu me servi da sopa de Fred e, enquanto esperava esfriar, continuei. Telefonei para a moça e, só quando teclei os primeiros números, cheguei a me tocar que são sabíamos sequer os nomes um do outro. A secretária eletrônica me fez deduzir que ela deveria ser uma advogada muito ocupada com o trabalho. E, talvez por segurança, a mensagem só repetia o número do local e o pedido para deixar algum recado. Tentei, outras vezes, meses a fio, e nunca consegui acertar um horário em que a mesma pudesse estar em casa.

(Leia a conclusão dessa história  na próxima semana. - César Pavezzi)

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