sábado, 9 de julho de 2011

IMAGENS FATAIS (Primeira Parte)

Sorriu maliciosamente quando terminou de ler a carta que a irmã lhe enviara. Pousou o envelope em cima da escrivaninha e ficou refletindo sobre os acontecimentos dos últimos meses.
Os feriados prolongados que vinham ocorrendo eram sinônimo de altos ganhos com a câmera de vídeo. Nunca imaginou que ser cinegrafista amador pudesse render tanto dinheiro. Até quando os seus trabalhos iam continuar é que não sabia. Eram arriscados e ele temia que a polícia um dia descobrisse suas manobras. E tinha o sócio, Armando, que também estava naquilo até o pescoço.
O telefone tocou:
-          Pronto...
-          ...!
-          É, estou sabendo... Não, vai ser tranquilo, como das outras vezes.
-          ...???
-          Que é isso, Armando?! Justo agora que a gente pegou o jeito do negócio, você vai medrar?
-          ...!
-          ‘Tá legal. Passa aqui pra gente combinar as coisas com cuidado. Vou ficar te esperando.
-          ...!
-          Até mais!
Voltou a pensar nos elogios da irmã, empolgada por ver as imagens que ele havia produzido dos acidentes nas estradas. “Trabalho super-profissional”, escrevia ela. “Sara deve estar orgulhosa de você”. Sara era a namorada de anos. Conhecera o rapaz na miséria e acompanhou sua trajetória de vida e os esforços que Célio fez para superar a perda dos pais. Mais do que ninguém ela achava que o namorado merecia o sucesso e os lucros que os vídeos vinham lhe proporcionando.
Acionou o aparelho de DVD que estava ao lado da escrivaninha e ficou revisando as imagens do último trabalho. O monitor mostrava a sequência dos carros passando e a barreira desmoronando, no momento exato em que um ônibus e dois automóveis despencavam encosta abaixo.
Alguém tocou a campainha da porta e ele desligou os aparelhos rapidamente. Parecia querer esconder aquelas imagens, como se elas guardassem um segredo mais do que profissional. Era um investigador do distrito policial mais próximo. Pediu que ele se sentasse e, com cautela, ofereceu-lhe um drinque.
-          A polícia anda pensando que os acidentes registrados pelo senhor têm sido criminosamente provocados... – jogou ele, depois das apresentações.
-          Em quê posso ajudá-los?
-          Não é muita coincidência estar nos locais, filmando, no exato instante em que os tais acidentes ocorrem?! – ele foi curto e grosso.
-          Devo entender que o senhor está me acusando?
-          Só estou tentando esclarecer as coisas. O que é que tem a dizer, senhor Célio?
-          Acredite ou não, foram felizes coincidências... Talvez eu tenha algum “dom” de ser atraído para essas tragédias – seu tom era irônico, mas seguro.
-          Onde esteve no último feriado?
-          Desci a serra, como todo mundo. Aluguei uma casa no litoral. Aliás, sempre faço isso. Por quê?
-          E aí, quando as coisas acontecem, o senhor está passando ao lado delas?
-          Nem sempre. Se viu meus vídeos nos jornais dever ter notado que os ângulos e as distâncias das imagens são bastante diversificados...
-          Para um cinegrafista amador o senhor planeja bem os serviços que faz – insinuou o agente, incisivo.
-          Eu não “planejo” nada, meu caro senhor policial. Daqui a pouco o senhor vai dizer que tenho um sócio que me ajuda a provocar aquelas mortes só pra que a gente possa ganhar dinheiro com as imagens. Ora, faça-me um favor – Célio fingiu irritação.
-          O senhor é quem está afirmando... Eu só vim conversar, esclarecer mais alguma coisa sobre os “acidentes”.
-          Pois bem, bateu em porta errada. O que sei está nos vídeos que fiz. O mais é trabalho para a polícia, já que suspeitam de algo – encerrou o rapaz, levantando-se da cadeira onde estava.
O investigador entendeu o gesto e despediu-se com um aceno rápido de cabeça. Cruzou com Armando no portão da casa.
-          Quem era? – quis saber o químico.
-          Um policial. Mas fique frio que não vai haver confusão nenhuma – observou o sócio.
-          Quem garante que não, Célio?! Eu te falei que eles estavam desconfiados... Acho que a gente devia dar um tempo – tinha um ar assustado.
-          Calma, sócio. Você sabe dos nossos objetivos... Vai ser só mais esta vez, eu garanto.
-          Você já disse isso várias vezes, e sempre quis continuar. Eu não quero me enrolar com a polícia. O que é que eu iria dizer à Noêmia, cara?! Não quero nem imaginar.
-          Para com isso, Armando. ‘Tá parecendo uma solteirona histérica, cara! Ninguém vai fazer nada contra nós. Sou eu quem faço as imagens, e o seu nome nem aparece. Nem nunca vai aparecer, fique tranquilo. A responsabilidade é só minha, entendeu?! Olha, toma esta bebida, se acalma e vamos trabalhar – e lhe ofereceu uma dose de vodca, enquanto falava.
-          ‘Tá certo. Mas é “sete de setembro” e acabou, combinado?
-          ‘Tá, ‘tá. Combinado. Fique frio. Presta atenção: desta vez nós vamos fazer a coisa acontecer no mar, certo? Vamos montar uma explosão da barco, uma batida nas rochas e “bum”. Hein?! O que você acha?
Armando balançou a cabeça e tentou prestar atenção no mapa das praias que o amigo lhe apontava. Os micro-explosivos já estavam prontos e eles eram os responsáveis por desencadear as sequências trágicas que Célio gravava. Na última vez, pequenas implosões nas encostas fizeram as barreiras desabar. Tudo calculado, até mesmo a distância em que o cinegrafista passaria do “acidente”. Havia um certo prazer para o rapaz em planejar e filmar aquelas cenas. Armando, como sócio, somente preparava o terreno e depois recebia uma porcentagem pela venda dos vídeos. Mas a sombra da polícia o amedrontava. Não bastasse ter de conviver com a contagem de várias mortes provocadas indiretamente por eles.
-          Entendeu tudo, sócio?! – Célio estava animado.
-          Mais ou menos. Vamos repassar – falou mecanicamente.

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi)

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