domingo, 24 de julho de 2011

IMAGENS FATAIS (Parte final)

         Noêmia e Sara conversavam, na casa desta última.
-         Eu acho que os dois andam trabalhando demais – observava a namorada de Armando, nervosa.
-         Eu também. Mas é dar muita moral pra eles ficar cobrando que a gente precisa passar mais tempo juntos. Queria te fazer uma proposta...
-         Acho que já posso adivinhar: sairmos nós duas juntas?
-         Melhor: vamos descer pra praia sozinhas no feriado. Que tal? – havia um tom de vingança na voz de Sara.
-         Ótimo! Nós podemos ficar com a turma do Rogério, aquele meu primo. Menina, ele tem um apartamento...
-         Certo, então está resolvido. Enquanto os “bonecos” trabalham, a gente se diverte.
-         É isso! – Noêmia sorria, contente.

*         *         *

                   Célio refletia muito, depois que o sócio deixou sua casa. “Desistir, adiar o serviço... Ele deve estar com muito medo, mesmo. Onde já se viu? Se deixar amedrontar por causa da visita desse investigadorzinho de um figa! Armando precisa se cuidar, se não vai acabar botando tudo a perder.”
                   Seu olhar parado tinha um brilho estranho. Misto de morbidez e revolta. Revolta por ter, no fundo do seu emocional, resquícios de um passado sofrido, triste e cheio de desamparos. Na verdade, ainda lhe doía relembrar o acidente que matara os pais. “Vai ser nossa segunda lua-de-mel” – diziam eles, antes da partida. Na estrada, uma curva, capotagem, explosão, cinzas. Tudo registrado coincidentemente por um cinegrafista amador que passava por lá no momento. Aquilo ainda falava alto nas reentrâncias de sua memória. E a sua revolta fazia um coro contínuo de vingança. Cada vez mais alto, cada vez mais perturbador... Vingança, vingança, era o que mais lhe dava prazer. O dinheiro era uma consequência. Só pensava em continuar sua desforra. Queria se vingar sempre, do destino, da fatalidade, talvez até de Deus... De tudo e de todos. Sempre. “Vingança!”
                   O telefone outra vez:
-         Alô!?
-         ...!
-         Oi, meu amor. Não atrapalha nada. Aliás, eu e o Armando já terminamos nosso papo.
-         ...?
-         Claro. Te vejo às oito, ‘tá bom?
-         ...!
-         Outro enorme pra você. Até a noite.

*         *         *

                   Já no apartamento de Rogério, as duas moças se preparavam para curtir o fim de semana prolongado. Aquele sete de setembro, numa terça-feira, vinha mesmo a calhar. Os namorados, como de outras vezes, diziam ter que trabalhar.
-         Vão se encontrar com a gente na terça. Foi a última coisa que Célio me disse – comentou Sara, ajeitando o biquíni.
-         Menos mal. Enquanto isso a gente aproveita pra conhecer a ilha do pai da namorada do Rogério.
-         Uau! Uma ilha?... E quem vai levar a turma toda pra lá?
-         Por acaso o Rogério emprestou uma lancha de um amigo. Vai ser perfeito...
-         Também acho. Vamos nessa que estou doida pra tomar um sol.
O dia estava esplendoroso. Céu azul, poucas nuvens e muito sol. Num hotel, na ponta da praia, Célio e Armando relembravam os planos.
-         Você vai hoje mesmo instalar as micro-cargas nas pedras lá daquela ilha – e apontava da janela, com o binóculo na mão.
-         Por que lá? – questionou o químico.
-         Porque com certeza alguns barcos e lanchas vão contorná-la ou procurar aportar para uma visita. A explosão vai parecer um choque com os rochedos e ninguém vai suspeitar de nada, pode crer!
Meia-noite e o jetsky de Armando cruzou devagar o espaço que separava a ilha da baía. Levava uma mochila com o equipamento e procurou instalar os explosivos com o maior cuidado. Olhou a sua volta, em todas as direções e executou rapidamente a sua parte do trabalho. Deslizou de volta para a praia, refletindo que definitivamente não iria mais participar daquelas coisas. Quantos pesadelos ainda iria ter, imaginando as vítimas que causara? Ultimamente, Célio vinha praticamente obrigando-o a continuar a tomar parte nos seus planos. Ele se sentia culpado, mas não o bastante para conseguir contrariar o amigo. Desde os tempos de colégio era assim. Célio arquitetava as manobras contra a turma e queria Armando do seu lado. Um sentimento misturado de admiração e temor convencia-o a seguir o colega.
Quando chegou ao hotel, o cinegrafista já dormia. Tinha um sono agitado, cheio de tremores. Parecia ter constantes pesadelos. Armando não entendia por que ele era tão obstinado em provocar aquelas mortes. Não podia ser só pelo dinheiro. Mas já estava determinado a participar pela última vez nos negócios. Diria isso ao rapaz na manhã seguinte. Demorou a pegar no sono...

                            *         *        *

-         ‘Tá legal, sócio. Fique na sua... Pode curtir uma praia que eu cuido do resto – falou Célio, momentos antes de partir para um lugar estratégico no seu jetsky.
-         Nunca mais, hein! É a última vez, cara – gritou, enquanto o outro se afastava.
O químico voltou ao quarto do hotel e, da janela através da qual se podia ver as pequenas ilhas, ficou observando pelo binóculo o movimento dos barcos. Havia uma lancha bastante luxuosa saindo da baía. Uma bandeira vermelha com um símbolo preto tremulava no auto da cabine de comando. A proa indicava que a embarcação ia na direção da ilha onde ele instalara os explosivos.
Deixou de lado o binóculo e usou o telefone para tentar falar com Noêmia. Alguém no apartamento lhe disse que ela tinha ido passear de lancha, até uma ilha. Um rasgo de intuição fez com ele pedisse mais detalhes sobre a embarcação. A voz do outro lado falou em proa alta, bandeira vermelha com símbolo preto, e o nome: Netuno, pintado bem grande no casco. Nem se lembrou dos celulares. Largou tudo e saiu correndo para o elevador do hotel. Chegou sem fôlego à garagem dos jetskies. Só pensava numa coisa: não podia deixar o barco explodir. A moça corria perigo por sua causa. Tinha que chegar antes nas pedras da ilha para desativar os micro-explosivos.
Célio pôde registrar, de onde estava, quando a explosão mandou lancha, jetsky, pedras, tudo para o ar. Grandes labaredas de fogo coroavam o espetáculo, enquanto ele terminava a filmagem. Uma expressão de profundo contentamento dominava seu rosto, durante a volta para o hotel. Desta vez, sem suspeitar sobre os frutos amargos colhidos por sua vingança.

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi)

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