domingo, 5 de junho de 2011

DEDOS DAS MÃOS (Parte I)

Mais dia, menos dia, eles iam me pegar. Derramei café na toalha da mesa pela terceira vez naquela semana. Verena me chamou a atenção de novo:
-         Que é que ‘tá havendo, hein?! Você anda muito tenso...
-         ‘Tô preocupado com uns problemas da Associação...
-         Ah, não! Essa “bendita” Associação outra vez. Vê se desliga um pouco. Desse jeito você não vai nem aproveitar suas férias direito – lembrou ela.
-         ‘Tá, ‘tá certo. Tem razão, acho que a viagem vai ajudar...
-         E aí? Já acertou os detalhes todos? Você sabe que eu ainda tenho que preparar a roupa das crianças e deixar as contas em dia... Não dá pra cuidar de outras coisas.
-         Vou comprar as passagens hoje mesmo. Na segunda, a gente embarca. Fique tranquila.
Tranquila... Tranquilo, era como eu gostaria de estar. Eu já tinha alertado o pessoal da Associação por diversas vezes: aquela situação era inadmissível. Se continuasse daquele jeito, ia acontecer uma tragédia...
Eu trabalhava numa Instituição Pública muito conhecida na região. Todo o espaço físico que ela ocupava nos arredores da cidade representava, naqueles tempos de tensão política, um excelente ponto estratégico. As manifestações de insatisfações, coordenadas por pequenos grupos fortemente armados, vinham aumentando de dimensão e amplitude. Em breve, a guerrilha ia se tornar constante na região... O interior não ia ficar isento de ser contagiado pelas tensões e conflitos sociais que assolavam as grandes cidades.
Um pânico, ainda que moderado, começava a se apoderar das cabeças mais bem informadas do lugar. Nós, da Associação de Funcionários, tínhamos discutido o assunto nas várias reuniões que ocorriam na época.
O que era inadmissível, repito, tinha a ver com o fato de que a Fundação Educativa, onde nós trabalhávamos, contava com somente dois vigilantes no final de semana. Dois vigias que não conseguiam, logicamente, rastrear a área toda, enquanto estavam de plantão. Reforçar a vigilância, pela segurança do local, era fundamental. Nem os pequenos furtos ocorridos podiam ser evitados, justamente por não se contar com um contigente maior de guardas. E agora, com a perspectiva de uma invasão da guerrilha, essa necessidade se tornava mais e mais premente.
Eu trabalhava como Relações Públicas, na Fundação, e bem por isso, fui indicado como secretário da Associação. Nas reuniões da entidade, somente o Presidente, eu e mais quatro representantes participávamos. Nós éramos os únicos, além do Diretor da Fundação, que sabíamos sobre a falta de seguranças existente no lugar. Aliás, preocupado ao extremo com as consequências perigosas que a situação pudesse acarretar, eu também já havia feito sugestões ao Diretor sobre a necessidade de reforçar a vigilância, contratando novos guardas.
-         A gente sempre trabalhou bem com meia dúzia de homens nesse serviço – explicou ele. – A comunidade nem se preocupa em checar se temos poucos ou muitos guardas na Fundação... E o sigilo, quanto a isso, já lhes dá uma certa segurança.
-         Mas, senhor, um dia esse sigilo pode ser quebrado...
-         Não acredito. Só eu e os senhores da Associação sabemos, com certeza, a exatidão dessas informações. E creio que são de absoluta confiança... Ou não são? – tinha a testa vincada e seu tom beirava a ironia.
-         Claro, senhor. Quer dizer que não existe nenhuma possibilidade de novas contratações?
-         Não. E compreenda que, num momento político como esse, não há condições de abrir concurso, seleção ou o que quer que seja. Chego a pensar se não é fantasia dos senhores, esse medo todo... Se me der licença, tenho processos para verificar e preciso ficar à vontade – ele se levantou e começou a caminhar em direção à porta.

-         Caio, ei, Caio! Parece que ‘tá dormindo sentado, homem – Verena me trouxe de volta ao presente. – Você vai ou não vai comprar as passagens?
-         Tem razão, amor. Já estou indo, já estou indo – peguei o paletó e fui saindo.
No caminho para o Terminal Rodoviário, continuei a refletir. Eu tinha um irmão que havia sumido por anos da cidade, com umas ideias políticas meio atravessadas. Era um revoltado e sempre me dava um arrepio na espinha quando imaginava em que ele poderia estar metido, diante daquelas manifestações de crise que vinham ocorrendo. Eis a síntese do meu medo: Jandir sabia que eu trabalhava na Fundação e que conhecia determinadas informações de caráter altamente confidencial. Mesmo sendo meu parente, sei que o mesmo faria qualquer coisa pela causa que defendia. Verena comentara comigo, por diversas vezes, que ele tinha aparecido na televisão como suspeito de liderar um dos grupos guerrilheiros que agiam no interior do Estado. Que, apesar da barba e dos óculos, ela pôde perceber quem era pela pequena cicatriz que viu no nariz dele. Achei que ela fantasiava, depois me dei conta que eu é que não queria acreditar.
-         Obrigado – agradeci pelo troco ao rapaz da agência, pegando as passagens.
Aquela viagem talvez me tranquilizasse. Em certos momentos, eu pensava estar ficando paranoico, com todas essas desconfianças. Mas, se meu irmão estava metido nestas agitações e conflitos, logo eu seria procurado. Eles iam me pegar, tinha absoluta certeza. Afinal, eu atuava no interior do melhor ponto estratégico da região. Através de Jandir, era fácil me localizar. Não, não. Não era paranoia minha. O retrovisor começou a me mostrar que minhas conclusões tinham fundamento. Alguém me seguia e já fazia dez minutos.
Em casa, enquanto conversava com Verena, olhei pela janela do quarto e vi o carro parado, com dois homens barbudos, na esquina. Prevendo o inevitável, resolvi expor tudo a minha mulher e traçar um plano de fuga.
-         E você vai ficar na cidade, Caio?
-         Por enquanto, meu amor. Eu vou dar um jeito de despistá-los e encontro vocês, na semana que vem.
-         Nada disso. Eu não vou sair de férias tranquila, tendo que esperar a solução desse problema... Você vai com a gente.
-         Você não entendeu. Não sei a dimensão do perigo que isso pode representar... As crianças e você têm que ficar em segurança. Faça exatamente como eu orientei. Pelo amor de Deus, Verena! – eu já estava entrando em desespero.
Ela me olhou assustada e moveu a cabeça em concordância. No outro dia, domingo, quando pôs nossos filhos no carro, pude ver duas lágrimas discretas rolarem de seus olhos. Os homens continuaram na esquina por toda a noite e, como não saíssem em perseguição ao nosso carro, concluí que estavam interessados em vigiar a mim.
Não saí o dia todo e, à noite, Verena me ligou. Disse que estava tudo bem, mas que sentia medo do que pudesse me acontecer. Eu a tranquilizei e reforcei a necessidade de que pegasse o ônibus na segunda. Sozinho, havia mais chances de me safar daquela perseguição.
O plano era sair pelos fundos, driblando os “caras” da esquina, pegar um táxi e me esconder, por uns dias, na chácara de um amigo. Depois, ele me levaria clandestinamente na sua camionete até a cidadezinha mais próxima. De lá, eu tomaria o ônibus para o litoral, onde encontraria minha família. Quando as férias acabassem, com certeza a polícia já teria interferido na ação do grupo que tentava me cercar.
Deixei a luz do banheiro acesa para que pensassem que eu ainda permanecia na casa e me arrastei da porta da cozinha até o muro do vizinho. Na rua de trás do meu quarteirão, comecei a me angustiar com a demora do táxi. Vi os farois brilharem, ao dobrar a esquina, e me animei. Não era o táxi e eu fui vendado e amarrado pelos dois homens que saltaram do carro. Tentei berrar, mas logo senti uma picada no pescoço e tudo apagou.

(Mais um conto de minha autoria extraído do livro: Pérolas de Amador - César Pavezzi)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"O direito à literatura"(fragmento)

Apresentamos, de forma objetiva, a visão de Antônio Cândido, grande historiador, analista e professor de Literatura: (...) "Chamarei de...