domingo, 19 de junho de 2011

DEDOS DAS MÃOS (Parte final)


Na manhã da segunda-feira, a esposa de Caio não viajou. Preocupada com o que poderia sinistramente ocorrer ao marido, procurou o Diretor da Fundação Educativa para pedir auxílio. A secretária foi taxativa:
-         Sem mencionar o assunto, que a senhora diz ser tão urgente, sinto muito mas não posso interferir na agenda dele.
-         Se disser que é a esposa do Caio, Relações Públicas, ele vai me receber – insistiu Verena.
-         Sinto muito, mesmo. É praxe adiantar o assunto... Só assim talvez o Diretor tente lhe facilitar a questão dos horários.
-         É assunto de... – interrompeu bruscamente o “vida ou morte”, imaginando que isto já seria motivo para especulação, o que redundaria em pânico na comunidade toda. – Bem, eu volto outra hora, pode deixar.
-         Se a senhora prefere assim. Até logo.
-         Tchau! – Verena tentou bolar um jeito de falar com o homem, enquanto saía da sala.
Lembrou-se da mulher do Diretor, uma senhora muito simpática e que, com certeza, saberia compreender seu apelo.
-         Bom dia, senhora Bérgamo. Como vai?
-         Bom dia, estou bem, obrigada. Você, quem é? – quis saber a mulher, surpresa, abrindo a porta do apartamento.
-         Meu nome é Verena e gostaria de pedir um favor especial. Posso entrar?
-         Claro, querida, claro. Você aceita um café?
-         Sabe, dona Jéssica, agradeço, mas o assunto é bastante urgente. Vou lhe contar tudo...
Depois de ouvir, espantada, as preocupações da moça, Jéssica ligou imediatamente ao marido, pedindo a ele que a recebesse. Antes que ela saísse, abraçou-a e lhe confidenciou carinhosamente que seu marido podia ser tudo, menos injusto com seus funcionários.

                            *       *       *

Não dormi direito, tive sobressaltos durante a noite toda e estava péssimo naquela manhã. Jandir veio, sozinho, falar comigo:
-         E então, quer abrir o bico ou prefere esgotar o prazo?
-         Não sei nem ao certo o que vocês precisam saber... – desconversei.
-         Não se faça de besta, Caio. Meus companheiros estão sendo muito pacientes com você pelo fato de ser meu irmão. Já era pra você estar todo dopado, cheio de marcas e, quem sabe, até tomado uns choquinhos pra se animar a falar. Você é um cara inteligente... Já devia prever que nós queríamos um ponto estratégico daqueles. Podia começar dizendo o número de vigilantes e o turno que eles fazem no fim de semana – sugeriu ele, sempre cínico.
Fiquei olhando para aquele rosto e, em segundos, rolava pela minha cabeça o filme da nossa infância. Quantas vezes a gente tinha brincado juntos, se safado de encrencas, se ajudado na hora de justificar nossas malandragens, nossas artes. Eu, mais velho três anos, nunca podia imaginar que Jandir fosse se tornar o que era... Ele tinha sim, mil motivos para revolta. Foi até bastante rebelde na adolescência... Mas chegar a esse ponto. Ali, na minha frente, me usando para uma causa que talvez nem ele soubesse a que servia. A mim, utilizando a mim, seu próprio irmão.
-         Eu não posso amar um irmão que compactua com esse Sistema que aí está – falou, de repente. – Eu não consigo imaginar como é que você aguenta trabalhar para o governo e ficar bancando o “burrinho de presépio" dessa gente...
-         Já ouvi essas histórias antes. Só tenho uma coisa pra te dizer: prefiro estar dentro do Sistema e lutar para mudar algumas coisas do que abandonar as coisas nas quais acredito.
-         Uma vez reacionário, sempre reacionário. Mas vamos ao que interessa: vai ou não vai começar a dizer o que sabe sobre a segurança da Fundação? – o tom era autoritário, meio nervoso até.
-         Quem me garante que vou sair dessa ileso? Quero...
-         Você não está em condições de querer nada! Ninguém aqui vai garantir coisa nenhuma! Comece a falar.
Permaneci mudo e atônito diante do radicalismo dele. Foram vários minutos de silêncio entre nós. Atrás da poltrona se ouvia a respiração ofegante de um homem que lutava entre a lembrança do que fôramos e o que significávamos um para o outro agora. Ele saiu da sala, mas retornou logo. Tinha um certo ar de triunfo.
-         Eu ‘tava sendo paciente... Já que não tem jeito, vamos ter que apelar para sua querida “mulherzinha”.
-         O que é que vocês vão fazer?! Deixem minha família fora disso! – eu dava arrancos na poltrona, tentando me mover.
-         Ela vai saber te aconselhar pra informar o que a gente precisa – disse e saiu, batendo a porta.
As cordas de náilon me apertavam o peito, os pulsos e o tornozelo. Não adiantava me debater, só fazia machucar mais e mais. E a sede começava a me perturbar. Comecei a rezar, com todas as forças, desejando que Verena e as crianças já estivessem a caminho do litoral.

                            *        *       *

Depois de constatar que Caio não chegara até a chácara do amigo, onde deveria ter se escondido, Verena confirmou ao Diretor da Fundação que o marido provavelmente fora raptado.
-         Calma, dona Verena. Nós vamos falar com a polícia... Não há outra maneira – decidiu o homem, com ar grave.
-         Mas isso pode provocar pânico, medo, sei lá, na comunidade toda – lembrou a mulher. – E Caio sempre se preocupou em resolver as coisas sem... Ah, meu Deus, como será que ele está agora?!
-         Ouça, eu tenho contatos muito importantes na polícia e lhe garanto que também é de meu interesse solucionar esta situação sem estardalhaço. Vou lhe dar este bilhete... Ligo para o detetive que cuidará do caso, enquanto a senhora vai até lá.
Ela agradeceu muito e saiu apressada, guardando o bilhete na bolsa. Pensava sobre o que fariam a Caio, se o tivessem agarrado. Ele era teimoso e, por certo, seria torturado. ‘Torturado, meu Deus!’ O clima no país até levava a pensar nisso, sim. Será que a polícia poderia ajudar? Alguma coisa, qualquer coisa tinha que ser feita para salvar seu marido.
-         Vamos fazer tudo... E com a maior discrição, não se preocupe – prometeu o investigador, quando ela chegou.
-         O Caio está em perigo... Tenho certeza. Ele... ele não me ligou hoje pela manhã, como combinado. Não esteve com o amigo, nem está em casa.
-         Já estou sabendo da história. E vou lhe orientar sobre o que a senhora pode fazer para nos ajudar a encontrá-lo, certo? Preste atenção...

*        *        *

Jandir estava armado quando os policiais entraram na casa, poucos minutos depois que Verena foi trazida. Entre surpreso e aliviado, ainda tentei livrar a cara do meu irmão.
-         Este homem seguiu minha mulher e veio me ajudar – consegui dizer, antes que o algemassem.
-         Isto é verdade, rapaz? – inquiriu o investigador, indeciso.
-         Não. Aliás, por que eu iria ajudar um “cara” que nem conheço? Eu sou o chefe aqui, detetive – retrucou, com desprezo, enquanto estendia os pulsos.
Senti que Verena tremia, ao me abraçar. Depois ela me contou sobre um micro-sinalizador colocado em sua roupa e a forma como ajudou a polícia. Eu não conseguia sorrir e sabia o quanto esta mulher me compreendia.

(In: Pérolas de Amador, de César Pavezzi)

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