sábado, 6 de outubro de 2018

Crônicas de um lugar esquecido

O filho do rio

Depois da inundação ocorrida no ano anterior, aquele outono aumentava o mormaço, e a sensação de ventos quentes incomodava os habitantes do vilarejo, mais parecendo persistência de verão. Algumas mulheres, que usavam as pedras do rio para lavarem suas poucas roupas, também aproveitavam a água para se refrescar naqueles dias. Não havia cantigas, ladainhas ou ruídos verbais de suas bocas. A atividade era silenciosa, dando vez apenas ao barulho mínimo provocado pela correnteza mansa, entre as pedras e nos barrancos. Era um quadro rotineiro e monótono que se repetia todas as semanas, só não ocorrendo em dias de chuva ou muito frio. 
O cesto veio descendo, lentamente, justo pelo lado em que as mulheres permaneciam nas suas esfregações e bateções de roupas. Distraídas, preocupadas em terminar logo o trabalho, demoraram-se a perceber que o balaio continha alguma coisa viva, que se movia e emitia um vagido, quase um choro, mas mais suave e balbuciante. Uma delas conseguiu, jogando um lençol enrolado, trazer o recipiente para perto. Quando olhou em seu interior, havia uma criança, muito pequena, corada, olhos vivazes e curiosos, movendo insistentemente mãozinhas e pezinhos bem feitos. Aquilo causou um alvoroço total no grupo, que, entre incredulidade e espanto, não sabiam exatamente o que pensar. De onde teria vindo aquele anjo, aquele inocente? Quem teria abandonado tão linda e saudável criaturinha? Era um milagre que não houvesse caído do cesto e sido devorado por algum animal do rio ou das margens... 
Depois de constatarem que era um menino, levaram o cesto para a cidade e, como já esperado, o acontecimento se espalhou como rastilho de pólvora, na comunidade inteira. Todos começaram a chamar o menino, em suas conversas e referências ao acaso admirável daquele dia, de "filho do rio". Mas o significado daquilo começou a ecoar nas mentes de todos os adultos do lugar como algo que traduzia certas crendices e superstições, típicas da mentalidade local: seria o menino o fruto de uma premonição positiva, de bom agouro? Ou esse aparecimento denotaria maus presságios? Começou-se um boato de que uma criaturinha tão bonita e saudável, ao menos na aparência, não poderia ser portadora de más novas ou fatos ruins. Ao contrário, somente deixava transparecer bondade e felicidade, naquele semblante angelical, do qual emanava vívida pureza. 
Até que, uma semana depois, tendo ficado aos cuidados da mulher que puxara o cesto para a margem, começaram a ocorrer estranhas mudanças no comportamento das pessoas que faziam parte daquela família. Numa discussão mais acirrada com o marido, por conta da falta de comida, o homem foi acometido de um mal súbito e não conseguiu sobreviver, mesmo sendo forte e jovem. Ninguém entendeu aquela morte. Detalhe inusitado: mesmo no velório do pobre homem, o bebê mantinha, o tempo todo, um sorrisinho maroto na face. Depois disso, ainda impactada com o fato, a mulher passou a guarda do "filho do rio" para outra família. E assim, em cada casa onde o menino era recebido, sempre acontecia algo negativo, enchendo os familiares de desconfianças, pois nunca, desde seu achado na beira do rio, o garoto tinha chorado. Somente se desenhava em seu rostinho aquele sorrisinho perturbador, mesmo nas ocasiões mais fúnebres. 
O alcaide, por fim, resolveu se responsabilizar pela criança, e o adotou. Quando tentou dar-lhe um nome, o menino, contrariando sabe-se lá qual lei da natureza, pareceu estar encarando o tutor nos olhos, com uma expressão séria, sem sorrir. O alcaide e sua mulher, absolutamente aterrados, aumentaram seu estupor ao ver que, depois desse momento, o tal "filho do rio" voltou a exprimir aquele sorrisinho provocador novamente. A esposa passou mal, teve um desmaio prolongado e, depois de muita abanação e tapinhas no rosto, voltou a si, completamente amedrontada. O marido não teve dúvidas: o rio trouxe, o rio leva. Ninguém mais voltou a falar sobre o menino, depois que o cesto foi visto levado, novamente, pela correnteza do rio.

César Pavezzi


Nenhum comentário:

Postar um comentário

"O direito à literatura"(fragmento)

Apresentamos, de forma objetiva, a visão de Antônio Cândido, grande historiador, analista e professor de Literatura: (...) "Chamarei de...