sábado, 7 de abril de 2018

Crônicas de um lugar esquecido

O bicho e o pescador

Foi num dia em que os peixes do rio que ladeava o vilarejo começaram a rarear, talvez por conta da mudança de estação, que o único pescador do lugar estranhou a presença daquele vulto enorme, que parecia observá-lo por detrás de moitas, do outro lado, na outra margem. Em vão, tentou divisar melhor se era uma pessoa alta, corpulenta, ou algum bicho desconhecido naquela região. Quando voltou a se concentrar na pesca que tentava realizar, o vulto sumiu. Ele bem que olhou por repetidas vezes e em várias direções, intrigado com aquela presença estranha, mas nem sombra.
Uma semana depois, a vegetação do outro lado traiu o movimento da criatura, e o homem pôde perceber que não se tratava de ser humano, mas sim de um animal grande. Porém, como da outra vez, ele ficou observando o homem lá de longe, perto da mata, e acabou por se afastar. Talvez por receio de que fosse rechaçado ou ferido pelo pescador. 
Depois de algumas aparições, por inteiro, mesmo de longe, o homem teve a certeza de que o animal era um urso, com pelo marrom escuro, estatura alta e imponente. Quando o mesmo ficou mais próximo da margem, e até pisou nas águas do rio, o velho pescador compreendeu duas coisas evidentes: o bicho tinha fome e se alimentava de peixes. Seu coração foi tocado por essas coincidências naturais que os unia. Tanto que, com um olhar mais demorado e apurado, conseguiu notar que o urso estava magro e fraco, mal conseguindo se manter ereto nas patas traseiras. 
A aproximação dos dois foi se fazendo de maneira lenta e curiosa, ambos se estudando e instintivamente procurando formas de não se estranharem ou se atacarem. O pescador, sabiamente, se lembrou que a mão que alimenta é a mão que ganha confiança... E começou a dividir os poucos peixes que conseguia do rio com o animal. Entre eles, então, surgiu um arremedo de amizade.
Muitas semanas depois, quando a lua mudou, uma noite de susto para o homem: o urso o havia seguido, depois da pesca, e estava dormindo no quintal de sua casa. E isso se repetiu por várias noites. Como o animal fosse silencioso e se esgueirasse por entre as sombras do vilarejo, quase ninguém notou. E se notou, ele passava somente como um vulto a mais, nas noites do lugar.
Até o dia em que, se sentindo ligado à companhia do pescador, o urso veio procurar comida na sua casa, assustando os vizinhos e outros moradores, que propuseram sua captura, ou como diversão ou para aproveitar sua pele, uma vez que o inverno chegaria logo naquelas paragens. Formou-se então, um verdadeiro pandemônio, por conta da perseguição que promoveram ao urso. O bicho, por força da quantidade de pessoas que o caçava, não quis confronto e preferiu fugir para as bandas do rio. 
O velho pescador já tinha deduzido isto, e quando o animal chegou na margem, ajudou-o a entrar no seu barco. E sem pensar no prejuízo que teria com sua atitude, empurrou o mesmo para a correnteza e deixou que o rio fizesse a sua parte. A turba barulhenta e excitada que chegava, só teve tempo de ver o vulto do bicho, que deslizava distante, salvo pelo amigo que queria preservá-lo de tudo aquilo.

César Pavezzi

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