segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Crônicas de um lugar esquecido...

Uma mãe que não era

Lá vinha ela novamente, pela rua central do vilarejo, empurrando a materialização de suas lembranças loucas e sofridas. Loucas porque faziam com que representasse um personagem surreal, exótico, forçado e desbotado. Sofridas pela assunção de sentimentos desvairados, porém convictos, que lhe acrescentavam um ar de coisa pouco humana.
Trazia nas vestes e no semblante as marcas de um tempo gasto numa procura inquieta de transformar em realidade aquilo que não podia ser... Marcas cada vez mais profundas de sua miséria emocional misturada com uma aparência de animal agitado e ansioso.
Percorria as ruas do vilarejo, do nascer ao poente, da mesma forma como fazia há muitos anos. Alguns revelavam já tê-la visto vagando também pelas noites frias e madrugadas silenciosas do lugar. Arrastava os pés numa sandália baixa, estropiada pelas caminhadas sucessivas e insistentes. Procurava o quê, aquela criatura? Sempre vagarosa, como uma lesma, e fechada na sua angústia. E nessa carapaça lenta e misteriosa, empurrava adiante, um carrinho de gêmeos. Sempre o mesmo carrinho duplo, ensebado e rasgado pela ação do tempo, sem nada dentro. Somente o vácuo de duas criaturas que nunca existiram... A não ser na sua imaginação neurótica e crivada de sonhos ocos.
Não falava, não cantava, não parava, durantes essas andanças. Antes, murmurava um gemido que, de tão baixo, quase ninguém do lugar percebia.
Visitantes ou viajantes que passavam pelo vilarejo queriam explicações, motivos, justificativas para o modo de se mover daquela infeliz. E ouviam muitas versões de histórias compridas, meio que folclóricas, sobre a mãe que não era... Uma delas dava conta de um grande amor perdido, e de promessas feitas a ela, vazias, como os dois lugares sujos que empurrava.
Um dia, apiedado da mulher, um velho mascate quis colocar bonecos dentro do carrinho duplo, como um lenitivo para aquela aflitiva situação de desesperança e ilusão mórbida. A frustrada mãe jogou os dois bonecos no rio, e continuou na sua jornada interminável, se arrastando pelas ruas do lugar, num murmúrio quase imperceptível a lhe sair pelos lábios. Nada substituía seu vazio particular de genitora.

César Pavezzi

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