O colecionador de chaves
O personagem usava roupas pesadas, de cores escuras, recobertas por um capote surrado, bastante desbotado. Na cabeça, um chapéu de tecido negro, e no pescoço, um longo cordão de metal claro, onde se penduravam dezenas de chaves de tamanhos e formatos diferentes. Não sorria muito, mas quando o fazia, seus dentes e o cordão eram as únicas coisas que se destacavam em meio aos tecidos que o envolviam. Chegou no vilarejo numa noite de calor abafadiço, e meia lua embaçada no céu.
Foi direto ao único bar local, ainda aberto já que nem era muito tarde. Sua entrada causou, é claro, um murmúrio curioso e carregado de desconfianças. Seus trajes, seu meio sorriso, o isolamento no balcão denotavam a todos sua decisão de querer estar só, isolado, longe de fofocas e especulações. O dono do bar ficou sabendo que ele iria passar apenas uma noite, e precisava de um lugar para dormir. Como há muito não ocorria, o homem disse que ele poderia usar um quartinho que tinha nos fundos, com a condição de ir embora logo pela manhã. Quando se recolheu, ainda pôde ouvir o ruído das pessoas que permaneceram comentando sobre sua aparição.
O que mais intrigava os moradores do pacato povoado era a existência daquele molho de chaves, pendurado no pescoço do forasteiro. E que, a cada movimento do suposto colecionador, faziam um barulho de metal perturbador. Que chaves seriam aquelas? Que portas abriram ou abririam? Para que viajar com aqueles objetos à mostra, como querendo transmitir algum recado, alguma mensagem enigmática? Essas e outras múltiplas questões se instalaram nas mentes e bocas de todos quanto se importavam com sua presença. Em muitos anos, nenhum estrangeiro vinha até aquela terra esquecida. O único conhecido que regularmente aparecia por lá era o velho mascate. E que, nos últimos tempos, também tinha rareado suas passagens por ali. Muitos habitantes mal dormiram à noite, incomodados que estavam com aquela figura estranha de chaveiro.
No outro dia, o dono do bar ficou espantado com o que percebeu. Nunca mantinha o quartinho trancado a chave, mas foi assim que a porta estava, quando tentou chamar pelo colecionador. Depois de mexer na maçaneta, ele voltou aos seus afazeres e deixou para indagar sobre aquilo mais tarde. O forasteiro surgiu no balcão do bar, sempre silencioso, e resolveu tomar alguma coisa, antes de se ir. Sem olhar muito para o peculiar personagem, lembrou que a porta do cômodo nem sequer tinha chave, e chegou à conclusão que o próprio colecionador a havia fechado, por dentro. Depois que ele pediu para permanecer mais um dia e uma noite no vilarejo, as suspeitas do proprietário aumentaram: aquele homem era um perigo, já que conseguia fechar e abrir qualquer porta com seu molho. E, mesmo concordando com a solicitação do mesmo, sentiu-se estimulado a dividir sua preocupação com outros amigos, que frequentavam o bar.
Resolveram testar o caráter do rapaz, inventando problemas com fechaduras de portas e janelas de algumas casas. A todos, ele conseguia resolver, utilizando algumas das chaves que trazia, sempre penduradas junto a si. Por que nunca se separava delas, tirando o cordão de metal do pescoço? Isso também se misturava aos questionamentos dos moradores, alimentando mais suspeitas...
Não sendo de muita conversação e mantendo uma postura distante, enfeitada de dúvidas, o colecionador passou a ser mais temido que respeitado. Chaves podem ajudar a abrir objetos, casas, caminhos... Mas que tipos de fechaduras aquelas chaves já não teriam aberto? Por quais casas, caminhos, lugares revelados aquele rapaz teria passado? Seria somente ele o dono daqueles objetos metálicos, tão significativos e, ao mesmo tempo, tão amedrontadores?
O alcaide chamou-o para uma visita, no intento de descobrir a origem do estrangeiro e o motivo de tantas chaves. Ele concordou com o encontro, desde que não tivesse que contar sobre sua coleção. Não era de falar muito, mas apreciou a bebida que o outro lhe ofereceu, e respondeu suas perguntas com monossílabos. Esse laconismo irritou o dono da casa, e também o fato de não conseguir saber sobre o molho. O homem saiu de lá tranquilamente, num momento de distração do seu interlocutor, que havia trancado a porta da sala, deixando-o admirado com a façanha.
Para muitos, o forasteiro já tinha se demorado e causado preocupações o suficiente. Um grupo de moradores foi convocado para levá-lo até a saída da cidade. Quando iniciaram a perseguição ao homem, o mesmo fugiu e adentrou uma velha torre do sino, abandonada, que existia na entrada do povoado. A porta estava trancada, e passou a ser vigiada constantemente, até que o homem tivesse sede ou fome, e saísse de lá. Quando a noite caiu, um pesado ariete foi usado para arrombar a passagem. Para espanto geral, o colecionador de chaves não foi encontrado. Havia sumido, sem que se ouvisse sequer o ruído metálico de sua misteriosa coleção.
César Pavezzi